terça-feira, 15 de abril de 2025

Chororô de um milhão de anos e o tempo que corrói tudo

é sempre sobre o outro
eu já sei disso há bastante tempo
o outro é o protagonista
e a história se desenrola a partir daí

o outro tem suas demandas
e é perfeitamente aceitável
todos temos demandas
todo mundo precisa de alguma coisa

o outro precisa de mim
o que sempre me fez
me sentir necessário

necessário
essa palavra é pesada
e ninguém percebe
o peso que ela trás

ser necessário
me obrigou a
ser vivo

ser vivo em um lugar
que eu nunca quis
ser vivo

nunca quis
ser vivo
mas eu sempre
quis entregar

me entregar para o outro
e me sentir não apenas
útil mas com certeza
necessário

nunca quis ser vivo
e sempre quis ser
necessário

merda de dicotomia
um lado a inexistência
o outro uma obrigação
de existir

hoje eu não quero ser necessário
mas eu morro de medo de morrer
eu quero ser vivo
quero muito ser vivo

e viver às minhas custas
viver as minhas histórias
as minhas derrotas e vitórias
mas meu corpo não quer nada disso

meu corpo não quer ser vivo
e o outro ainda demanda
mesma vida outros conflitos

um corpo que não quer existir
uma mente que quer ser viva

o outro que quer que eu seja necessário
e eu nem aí pela necessidade do outro

a necessidade não diz mais
que a minha vida tem valor

mas o outro tem demanda
a vida tem demanda
o corpo tem demanda
eu tenho demanda

necessário

me sinto em uma caverna
passando por um espaço
onde só meu corpo cabe
e na fraqueza me movo

meu movimento é lento
os músculos doem e
tudo é hostil

o outro e eu mesmo
toneladas de terra
o ar rarefeito

espremido com
o seguinte objetivo
ir em frente

seguir vivo

eu preciso sair daqui

a ansiedade vence
o pânico vence

o outro perde
se decepciona

demandas mal cumpridas
versos mal escritos
noites mal dormidas
almoços mal feitos
comida mal digerida
mal e mal vivo

malemá

malemá
escrevo
o que
sinto

aí já vem a vontade de apagar tudo
porque eu tô dizendo que tudo é uma merda
porque existe o outro
porque existe demanda
porque existe um corpo
a culpa nunca é minha
eu não consigo me vestir culpado
a culpa é minha sou todo culpa


eu só me visto

culpado.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

O brilho de uma mente brilhante ou a história de uma alma vulgar

eu sinto falta da tristeza
porque agora tudo
vira raiva
e sou esse fogo

virei fogo
e tudo que
toco
vira cinza

tudo vira raiva
e porque não sei
o significado
não vira ódio

por pouco
não vira
ódio

me sinto pequeno
porque antes o
fogo era sensualidade

e eu me sentia
sensual pra
caralho

eu já fui fogo
um fogo triste
com os olhos
de sedução

um corpo de sexo
e um cérebro de sexo
e tudo isso
era fogo

hoje o fogo é
raiva

só raiva

sem tristeza

pequeno como pederneira
que por fricção
vira faísca
e todo o resto
é combustível

eu explodo
em chamas

tudo que toco
vira cinza

vou incendiando
a minha volta
o meu espaço
o meu próprio corpo

tudo é incêndio
e o que eu era
virou cinza

terça-feira, 1 de abril de 2025

Acredite, engula, aproveite, ganhe, mais um dia

A manhã vinha cheia de barulhos e tudo me parecia demais. Às vezes é demais. O trânsito lá fora, as pessoas, tantas pessoas, um mundo cheio de pessoas que buzinam e silenciosamente rumam ao seu destino. Porque há sempre um destino. Um fim. E um começo. E um novo fim. E um ciclo que se repete até o universo ir se desintegrando passo a passo, buzina a buzina. O sinal abre. O sinal fecha. Pouco carro anda. A bicicleta ultrapassa. O barulho. O barulho. Os meus talheres batendo na minha louça. Minha xícara batendo na minha mesa. Meu coração batendo no meu peito. Minhas angústias sonoras. Alto e bom tom. Como música sem ritmo. Como ritmo sem instrumento. Como instrumento sem som. Tudo reverbera. Belo como animal irrequieto. Monstruoso como quatro mil palavras presas na garganta. A manhã vinha cheia de barulhos e tudo me parecia demais. Às vezes é demais. Quatro mil palavras presas na garganta e o trânsito lá fora. Tantas pessoas como ritmo irrequieto. Meu coração como talheres batendo na minha louça. Sinal fecha, sinal abre, e meu peito quase não fala. Estou a um universo de distância do meu corpo. Meu corpo fechado. Minha mente aberta. Eu diluo no céu. O céu barulhento. Como animal irrequieto craquejo no meu próprio silêncio. Meu corpo quer tanto dançar. O barulho sem ritmo. Como música para os ouvidos. Às vezes é demais. De fone de ouvido, em silêncio, me protejo. Meu barulho me assusta. Ligo música. E ela me contempla. Me completa. Meu barulho me esquece. Meu corpo quer dançar. Aumento o volume até que o limite seja físico. Enquanto o tímpano não dói, a música fica mais alta. E alto, eu desmancho. Meu corpo caindo, minha mente em pé. E eu me perguntando que merda que eu fiz da vida. Quem eu deveria ter sido? Onde eu errei e onde eu acertei? Acertei no meu pé. Manco até o banheiro. Acendo a luz e me vejo no espelho. Sem barulho. Só música. Manco até essa cadeira. A gata deita sobre as minhas pernas. E eu me sinto tão longe de tudo que há de legitimo. Tudo surreal. Sem barulho. Só uma manhã com quatro mil palavras escondidas em uma garganta que não fala. Os dedos craquejam e em mosaico os cacos de todas elas se juntam. Meu corpo pede dança, meus dedos o fazem. Já fui outro. Anseio por amanhã. Serei eu mesmo. Sem ritmo, sem pessoas, sem soluço e sem universo. Só eu mesmo.