terça-feira, 5 de novembro de 2024
Um labirinto sem solução ou a labirintite e o soluço
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Ela mesmo
terça-feira, 22 de outubro de 2024
A cascata
Bêbado numa terça-feira à tarde. O mundo já tinha acabado, então tudo bem acabar bêbado. Acho que foi assim que eu pensei? Não, eu só estava horrível como nunca. Pouco tempo antes, havia tirado uma soneca sem querer. Deitei na cama para ouvir e acabei paralisado num inferno sem fim. Sem fome, sem sono, com dor. E dormi. E sonhei. E acordei. Com fome. E sem força, dormi. E me revirei. E dormi. Até levantar e finalmente minha cabeça tremer pra cima e pra baixo involuntariamente. Num constante sim sem fim. Sem sentido. Com um leve tom de desespero. Aí decidi que ia comer. Já passava do meio dia há algum tempo. E dali vão procrastinações que me levam a finalmente cozinhar. E cozinhar, por que não com uma cervejinha? Assim que eu fiquei bêbado numa terça-feira de tarde. Eu só ia cozinhar péssimo. Nada demais. Era só o fim do mundo e eu acabei ficando bêbado.
Eu entendi um pouco mais de mim. Eu estou muito preocupado com o futuro. Não preocupado com temor. Mas preocupado com ansiedade. Ansioso pra que ele venha logo e me mostre tudo o que há nele. De repente eu entendo que o passado é tudo o que temos. O futuro são partículas de anseios. E o presente é esse meio-termo superficial onde há uma constante guerra entre manter as coisas como o passado comanda e o paradigma do futuro que nunca se apresenta. O futuro é segurado pelo presente. O passado é segurado pelo presente. E eu sinto que só o presente é uma jaula. O presente me prende.
Há liberdade no passado. Podemos viajar em todas as eras que a humanidade já se deu o trabalho de traçar. No fundo, são perspectivas que se tornam narrações. A História, com H maiúsculo, não passa de histórias coletivamente bem aceitas. Histórias, com h minúsculo, que contam e recontam como nós humanos viemos parar nesse ponto singular no espaço e tempo.
Há liberdade no futuro. Imagináveis e inimagináveis projetos de possibilidades para um tempo que, efetivamente, nenhum de nós irá viver. Há quem acredite que o futuro se baseia em sonhos. Sonhos são futuro ilegítimos pessoais. O futuro não depende de pessoalidades. Embora algumas pessoas tem poderes maiores sobre o que acontecerá nele. Eu imagino, eu vejo, eu anseio. Eu tenho as minhas vontades e desejos. Nenhum deles é sonho. E muitos deles falam de futuro. Futuro distante. Milhões de anos lá na frente. Longe, mas muito longe de mim. Longe de tudo que nós conhecemos. Longe de tudo que nós imaginamos. Porque o futuro é que nem o passado, por um lado tem fim, neste, ou começo, naquele, mas na outra ponta é infinito.
Há liberdade no infinito e apenas no infinito.
O futuro não tem História, mas ele só acontece por causa dela. Não há futuro sem História. Não há História sem presente. Não há futuro sem presente. Mas no presente, não há liberdade. Há uma constrição contínua do que podemos ser, o que podemos fazer, o que aconteceu e o que acontecerá. Há pouca imaginação disruptiva, há pouca surpresa. E nesse universo pouco surpreendente: eu existo.
Eu entendi que não estou preocupado comigo. Eu não estou preocupado com a humanidade. Eu não estou preocupado com a verdade. Estou preocupado com o que acontece. The big picture. Nada mais que a big picture. E estou preso porque nunca verei isso tudo. Com a impressão de que eu fico preso nesse lugar que o passado segura o futuro. Nada acontece porque há uma correia, um freio, um limitante. Como se o presente fosse um copo cheio de passado e o futuro esparramasse sobre, e passado e futuro se misturassem e transbordassem o copo. Num ciclo sem fim. Passado e futuro se misturando e transbordando essa mistura. Perdendo oportunidades e a nossa História aos poucos.
Eu me sinto fora do tempo. Anos há frente, não muitos. Todos os meus pensamentos e minhas ações rondam esse futuro próximo. Eu não consigo me ater ao presente. No presente eu fico preso no passado. No presente, meus genes são passado. Eles me destroem. Meus genes odeiam o meu corpo. Meu passado odeia o meu corpo. Eu odeio o meu corpo. E eu havia escrito, antes da edição, que "sem em nenhum momento odiar o meu passado". Eu sei que é mentira. Eu odeio o presente. O presente me prende. O presente me ofende. O presente me reduz. O presente me deixa tão pequeno que eu tenho consciência de que sou um merda. O presente é a minha camisa de força enquanto loucamente almejo o futuro. O futuro que eu nunca verei. O futuro que vem lá na frente, bem depois dos meus pensamentos e minhas ações.
Eu não me preocupo comigo. Eu me preocupo com o futuro. A liberdade do futuro. Será que serão livres? Sejam as vidas que sejam, humanos ou não. Quem vai sobreviver à essa catástrofe? Eu não, tenho certeza. Humanos ou não, eu imagino.
O que sobra sou eu, preso nesse corpo bêbado e definhante.
terça-feira, 15 de outubro de 2024
Descontrole
Ela chegou do trabalho e o o portão não abriu. Apertou o controle entre três e um milhão de vezes. Assistindo a luz brilhando vermelha dizendo, sim, aqui tem pilha. Saiu do carro e ali perto do motor, ficou a apertar sem sucesso mais um pouco. Entrou pelo portão de pedestres e logo lembrou da chave do motor que desligava tudo e deixava no manual. A chave ela guardou no aparador da entrada, porque sabia que um dia ia precisar, e precisou. E foi fácil, abriu como se tivesse assistido um vídeo no YouTube que lhe explicava passo a passo, mas não foi assim, só o fez e abriu o portão, guardou o carro, e travou o portão de novo. Apertou o controle de novo, só porque vai que... mas nada.
E aquele cansaço que trouxe do trabalho ficou maior. Pegou um salgadinho, deixando a janta pra mais tarde, e foi pra cama assistir a sua novela turca que passava na Record. Já coberta naquele dia úmido, pegou o controle da TV e... nada de novo. O controle não ligava a TV. A luz também piscava. E ela mirou pra todo lado, apertou de todo jeito, afinal sabia que as pilhas tinham sido trocadas há pouco tempo, então não era pilha. Bate o controle, troca as pilhas de lugar - uma pela outra, mas nada. Desiste. Ela precisa comprar um controle novo, é essa a conclusão. Levanta para ir comprar, mas já são 18h30.
O mercadinho do português já estava fechado. Ela sabia que lá tinha controle. Ela não sabia o nome o mercado, nem do português, então chamava de mercado de mercadinho do português. E lá tinha todo tipo de coisa que você imagina. O português tinha cara de português, jeito de português e cheiro de português, se é que português tem cheiro. Na verdade se chamava José Ferreira da Lima, e Lima é um nome espanhol, e na verdade ele nascera em Aparecida do Norte, então não dava pra dizer que José era português, essencialmente. Mas tinha bigode grisalho de português, era calvo como um português e tinha uma barriga de português, embaixo da sua camiseta polo branca surrada e encardida. Enfim, estava fechado e não tinha jeito. Ficava sem controle. Só por Cristo mesmo.
E foi para o sofá, levando a coberta consigo. Esse controle funcionou e a novela já tinha começado. Só por Cristo mesmo. Cansada e cansada e cansada. Dormiu ali mesmo. Sonhou com a novela, aliás. De madrugada foi pra cama e não sonhou mais.
Às 6h30, acordou com o despertador. E sem pensar muito, ligou a TV como hábito. A TV acorda ela, ela diz. E ela levanta e se veste, sem prestar atenção no que passa ali. Ao ver a TV ligada, lembrou do controle e do português José. Desligou a TV e ligou de novo, só para testar o controle, que funcionou sem drama algum. Sentou na cama, na mesma posição de sempre - e da noite anterior - e testou de novo. Funcionou. Então foi de um pulo só até o carro. Pegou o controle do portão e apertou uma vez só. E o portão se abriu.
Misericórdia! Ela disse em voz alta.
Ficou sem saber o que fazer. Achava que estava com alguma coisa ontem. Não sabia o quê. Era energia? Meia luz ou a energia dela mesma? Será que estava doente ou era a umidade do ar? Ficou preocupada, com um pouco de medo. Rezou uma Ave Maria sibilante. Escovou os dentes e foi pro trabalho. E só quando chegou, lembrou que esqueceu de tomar café da manhã.