terça-feira, 5 de novembro de 2024

Um labirinto sem solução ou a labirintite e o soluço

quatro e meia e o dia não tinha muito bem começado
há no corpo algo de extraordinário
uma tonelada um peso um desejo
desejo de fim de morte de nada

não numa qualidade suicida e depressiva
mas numa latente vontade de acabar
a vontade do corpo
não minha

eu sigo esperando
porque ali na frente
essa tonelada passa
e por milagre não há dor

droga é milagre no século vinte e um
quatro e meia e o dia não começou
dor e dor e dor e minha cabeça fica
se lembrando duma questão que sempre esteve aqui

o que havia aqui?

porque o que há é degradante
e eu me seguro em degradar
o que já está degradado

não há motivo para chutar
o gato morto
humilhar o humilhado
e exaltar os defeitos de si

há sim uma espécie de condolescência
como se me visse em terceira pessoa
e meus pêsames, meu amigo

vida que segue
e luto que fica

mas exatamente
o que havia aqui?

escrevi com todas as letras
onde eu me perdi?

e com essas palavras
me encontrei olhando pra
essas letras

meus punhos e mãos doendo
como se eu tivesse escrito
uma longa redação

e olhando pra essas letras
eu me achei em frente ao meu teclado
olhando para o meu monitor
sentado na minha cadeira
fones de ouvido tapando o mundo lá fora
sem música
só os ruídos abafados da cidade

me encontrei

pontualmente
espacialmente
singularmente

sem saber

quem eu sou de verdade

e

onde
eu
me
perdi.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Ela mesmo

das minhas mãos
surgiam palavras
e como um mago
eu inventava um mundo

os meus olhos tortos
viviam seu jogo de adivinhação
e por todas as vezes que
fui, agora fico

sentindo na pele quente
o sereno frio às quatro da tarde
criação de um desejo impulsivo
de viver o depois antes do agora

a mente fora de mim
porque no espelho
vejo casca e máscara
e aqui dentro, sucumbo

debato
remexo
tremo
e aperto as mandíbulas

eu sou o noia
vivendo de paranoias
e de paraquedas
caio devagar

falo sozinho
escrevo essas palavras

nada significa
tudo é morte
e a morte é linda
como os periquitos contentes
que giram e pousam
na árvore frondosa
de um lugar
que jamais
vai deixar de existir

porque algumas coisas
nunca vão acabar
e outras já se foram
e nada disso
que minhas mãos criam
faz algum sentido

só a minha cabeça
apoiada na cadeira
e meus dedos dançantes
sem propósito
ou fim
só isso
que vai indo
mais pra baixo
e mais longo
como a vida
ela mesma

que vai indo
mais pra baixo
e mais longa
sem fim
sem morte
sem suicídio
sem eutanásia
sem acidente

mas um café da tarde
com bolo quente
uma noite bem dormida
com a gatinha esquentando as pernas suadas
um sonho
que se apega
em realidades
que jamais
virão
ver a vida

ela mesma
que minhas mãos
não conseguem
inventar

terça-feira, 22 de outubro de 2024

A cascata

Bêbado numa terça-feira à tarde. O mundo já tinha acabado, então tudo bem acabar bêbado. Acho que foi assim que eu pensei? Não, eu só estava horrível como nunca. Pouco tempo antes, havia tirado uma soneca sem querer. Deitei na cama para ouvir e acabei paralisado num inferno sem fim. Sem fome, sem sono, com dor. E dormi. E sonhei. E acordei. Com fome. E sem força, dormi. E me revirei. E dormi. Até levantar e finalmente minha cabeça tremer pra cima e pra baixo involuntariamente. Num constante sim sem fim. Sem sentido. Com um leve tom de desespero. Aí decidi que ia comer. Já passava do meio dia há algum tempo. E dali vão procrastinações que me levam a finalmente cozinhar. E cozinhar, por que não com uma cervejinha? Assim que eu fiquei bêbado numa terça-feira de tarde. Eu só ia cozinhar péssimo. Nada demais. Era só o fim do mundo e eu acabei ficando bêbado.


Eu entendi um pouco mais de mim. Eu estou muito preocupado com o futuro. Não preocupado com temor. Mas preocupado com ansiedade. Ansioso pra que ele venha logo e me mostre tudo o que há nele. De repente eu entendo que o passado é tudo o que temos. O futuro são partículas de anseios. E o presente é esse meio-termo superficial onde há uma constante guerra entre manter as coisas como o passado comanda e o paradigma do futuro que nunca se apresenta. O futuro é segurado pelo presente. O passado é segurado pelo presente. E eu sinto que só o presente é uma jaula. O presente me prende.


Há liberdade no passado. Podemos viajar em todas as eras que a humanidade já se deu o trabalho de traçar. No fundo, são perspectivas que se tornam narrações. A História, com H maiúsculo, não passa de histórias coletivamente bem aceitas. Histórias, com h minúsculo, que contam e recontam como nós humanos viemos parar nesse ponto singular no espaço e tempo.


Há liberdade no futuro. Imagináveis e inimagináveis projetos de possibilidades para um tempo que, efetivamente, nenhum de nós irá viver. Há quem acredite que o futuro se baseia em sonhos. Sonhos são futuro ilegítimos pessoais. O futuro não depende de pessoalidades. Embora algumas pessoas tem poderes maiores sobre o que acontecerá nele. Eu imagino, eu vejo, eu anseio. Eu tenho as minhas vontades e desejos. Nenhum deles é sonho. E muitos deles falam de futuro. Futuro distante. Milhões de anos lá na frente. Longe, mas muito longe de mim. Longe de tudo que nós conhecemos. Longe de tudo que nós imaginamos. Porque o futuro é que nem o passado, por um lado tem fim, neste, ou começo, naquele, mas na outra ponta é infinito.


Há liberdade no infinito e apenas no infinito.


O futuro não tem História, mas ele só acontece por causa dela. Não há futuro sem História. Não há História sem presente. Não há futuro sem presente. Mas no presente, não há liberdade. Há uma constrição contínua do que podemos ser, o que podemos fazer, o que aconteceu e o que acontecerá. Há pouca imaginação disruptiva, há pouca surpresa. E nesse universo pouco surpreendente: eu existo.


Eu entendi que não estou preocupado comigo. Eu não estou preocupado com a humanidade. Eu não estou preocupado com a verdade. Estou preocupado com o que acontece. The big picture. Nada mais que a big picture. E estou preso porque nunca verei isso tudo. Com a impressão de que eu fico preso nesse lugar que o passado segura o futuro. Nada acontece porque há uma correia, um freio, um limitante. Como se o presente fosse um copo cheio de passado e o futuro esparramasse sobre, e passado e futuro se misturassem e transbordassem o copo. Num ciclo sem fim. Passado e futuro se misturando e transbordando essa mistura. Perdendo oportunidades e a nossa História aos poucos.


Eu me sinto fora do tempo. Anos há frente, não muitos. Todos os meus pensamentos e minhas ações rondam esse futuro próximo. Eu não consigo me ater ao presente. No presente eu fico preso no passado. No presente, meus genes são passado. Eles me destroem. Meus genes odeiam o meu corpo. Meu passado odeia o meu corpo. Eu odeio o meu corpo. E eu havia escrito, antes da edição, que "sem em nenhum momento odiar o meu passado". Eu sei que é mentira. Eu odeio o presente. O presente me prende. O presente me ofende. O presente me reduz. O presente me deixa tão pequeno que eu tenho consciência de que sou um merda. O presente é a minha camisa de força enquanto loucamente almejo o futuro. O futuro que eu nunca verei. O futuro que vem lá na frente, bem depois dos meus pensamentos e minhas ações.


Eu não me preocupo comigo. Eu me preocupo com o futuro. A liberdade do futuro. Será que serão livres? Sejam as vidas que sejam, humanos ou não. Quem vai sobreviver à essa catástrofe? Eu não, tenho certeza. Humanos ou não, eu imagino.


O que sobra sou eu, preso nesse corpo bêbado e definhante.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Descontrole

Ela chegou do trabalho e o o portão não abriu. Apertou o controle entre três e um milhão de vezes. Assistindo a luz brilhando vermelha dizendo, sim, aqui tem pilha. Saiu do carro e ali perto do motor, ficou a apertar sem sucesso mais um pouco. Entrou pelo portão de pedestres e logo lembrou da chave do motor que desligava tudo e deixava no manual. A chave ela guardou no aparador da entrada, porque sabia que um dia ia precisar, e precisou. E foi fácil, abriu como se tivesse assistido um vídeo no YouTube que lhe explicava passo a passo, mas não foi assim, só o fez e abriu o portão, guardou o carro, e travou o portão de novo. Apertou o controle de novo, só porque vai que... mas nada.

E aquele cansaço que trouxe do trabalho ficou maior. Pegou um salgadinho, deixando a janta pra mais tarde, e foi pra cama assistir a sua novela turca que passava na Record. Já coberta naquele dia úmido, pegou o controle da TV e... nada de novo. O controle não ligava a TV. A luz também piscava. E ela mirou pra todo lado, apertou de todo jeito, afinal sabia que as pilhas tinham sido trocadas há pouco tempo, então não era pilha. Bate o controle, troca as pilhas de lugar - uma pela outra, mas nada. Desiste. Ela precisa comprar um controle novo, é essa a conclusão. Levanta para ir comprar, mas já são 18h30.

O mercadinho do português já estava fechado. Ela sabia que lá tinha controle. Ela não sabia o nome o mercado, nem do português, então chamava de mercado de mercadinho do português. E lá tinha todo tipo de coisa que você imagina. O português tinha cara de português, jeito de português e cheiro de português, se é que português tem cheiro. Na verdade se chamava José Ferreira da Lima, e Lima é um nome espanhol, e na verdade ele nascera em Aparecida do Norte, então não dava pra dizer que José era português, essencialmente. Mas tinha bigode grisalho de português, era calvo como um português e tinha uma barriga de português, embaixo da sua camiseta polo branca surrada e encardida. Enfim, estava fechado e não tinha jeito. Ficava sem controle. Só por Cristo mesmo.

E foi para o sofá, levando a coberta consigo. Esse controle funcionou e a novela já tinha começado. Só por Cristo mesmo. Cansada e cansada e cansada. Dormiu ali mesmo. Sonhou com a novela, aliás. De madrugada foi pra cama e não sonhou mais.

Às 6h30, acordou com o despertador. E sem pensar muito, ligou a TV como hábito. A TV acorda ela, ela diz. E ela levanta e se veste, sem prestar atenção no que passa ali. Ao ver a TV ligada, lembrou do controle e do português José. Desligou a TV e ligou de novo, só para testar o controle, que funcionou sem drama algum. Sentou na cama, na mesma posição de sempre - e da noite anterior - e testou de novo. Funcionou. Então foi de um pulo só até o carro. Pegou o controle do portão e apertou uma vez só. E o portão se abriu.

Misericórdia! Ela disse em voz alta.

Ficou sem saber o que fazer. Achava que estava com alguma coisa ontem. Não sabia o quê. Era energia? Meia luz ou a energia dela mesma? Será que estava doente ou era a umidade do ar? Ficou preocupada, com um pouco de medo. Rezou uma Ave Maria sibilante. Escovou os dentes e foi pro trabalho. E só quando chegou, lembrou que esqueceu de tomar café da manhã.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

O dilema dos 3 corpos, ou a pele que habito, ou mais um besteirol americano

vai ver meu erro
foi achar que minha alma
deveria ser salva
por alguém

e de destino em destino
vazo de ralo a cano e cano em cano
indo sempre num rumo qualquer
mas sem controle nenhum

quem vai salvar a minha alma?

entre corpo, espírito e alma
tenho mais dó dela
me parece frágil
e toda vez que penso nela
sinto culpa

me desculpe, alma
por toda essa coisa estranha
que eu te fiz passar

e aí fica você suja e marcada
como um mau aluno que só não soube se adequar ao sistema
como um réu que foi preso na injustiça
como um limão podre em uma árvore saudável

o espírito é forte
vive há muitas vidas
e vive para errar
e acertar
e costurar
tapar buracos
resolver problemas
salvar vidas

o espírito é o herói

o corpo é fraco
desprezível
passageiro
ignóbil
por um descuido
não vira pastel
ou pasta de dente
ou salsicha
ploc e acabou

o corpo peca
suja a alma
atrasa o espírito



quem vai salvar a minha alma?

me deixa só e eu fico sozinho

não preciso mais
de salvação

me deixa só que eu vou embora



quem vai salvar a minha alma?

me deixa só 
que eu não preciso mais
de salvação

quinta-feira, 13 de junho de 2024

O coletivo de réus julgados culpados por juris culpados em um planeta de criminosos e a dor de acordar todos os dias

havia algo de inconsistente nessa inconstância
me formei como três pontos seguintes
e de suspiro em suspiro a doce vida
se torna reticências reminiscentes de um vazio

em uma matemática fundamental eu me vejo médio
mas recontando os caminhos que me trouxeram aqui
já não sei se são montanhas - russas ou não - ou buracos
o importante é que emoções eu vivi já dizia um mestre

emocionalmente indisposto a viver emoções
levantando bandeirolas ausentes de política por um cansaço
de que tudo já foi pra merda há muito tempo
e que não há luta que valha a pena

amor e prazer e carinho e valor e todas as coisas fundamentais
como arroz e feijão e uma proteína e uns nutrientes e vitaminas
tudo envolto em dores que me faz me olhar no espelho
e ver que esse rosto redondo de corticoide não tem mais orgulho de ser
nem de sentir nem de estar, suprindo ou suprimindo, como inspiros e expiros

eu penso em silêncio:
alguém me mata
nessa quinta-feira
com cara de segunda

guardo o pensamento no bolso fundo
junto com pó e cinza e comprovantes de
compras esquecidas e sonhos prometidos

resisto
eu acho

reticência
é o que eu chamo
de normal

domingo, 12 de maio de 2024

O robô com sentimentos e sua melodia em autotune

oscilando em honestidade e mentiras plenas
em vazios e cheios tristezas e alegrias
infelicidades e esses picos extremos de prazer

honestidade nunca foi sinceridade
meu peito aberto sempre esteve fechado
minhas muralhas construídas como cebolas

protegido do mundo dentro do meu mundo
protegido de mim dentro de mim
sem saber se ao menos sinto de verdade

as mentiras que conto às vezes são verdades
e essas verdades ressoam tão reais para mim
que eu nunca imagino que eu minto

meus vazios me sugam pra dentro
e neles eu me sinto completo
pronto para passar em um portal que me leva a outro lugar

já os cheios me transbordam
e me assustam se me pegam de surpresa
mas se não me pegam sou o protagonista do show

eu achei que eu era triste e isso era eu
só que todo mundo repete que tristeza
não é característica mas sentimento

fico triste
quem sou eu
senão triste?

as alegrias sabotam a tristeza
deixam tudo normal plano monótono
porque somando os picos e vales
ficamos nessa média quieta

o oposto de felicidade é tristeza
e eu não acredito na felicidade
devia ser infelicidade
mas infelicidade não é tristeza
uma coisa não é outra
e o infeliz segue

os picos me explodem
me deixam mais triste do que as tristezas
porque por instantes tudo é tão belo
e há na beleza algo irresistível
que é combustível pra passar por cima de tudo
e com esperança e amor
sigo cego

até que o sentimento dispersa
honestamente raciocínio
e estou de novo
no limbo da linha horizontal
sem pico nem vale
sem alto nem baixo