terça-feira, 15 de outubro de 2024

Descontrole

Ela chegou do trabalho e o o portão não abriu. Apertou o controle entre três e um milhão de vezes. Assistindo a luz brilhando vermelha dizendo, sim, aqui tem pilha. Saiu do carro e ali perto do motor, ficou a apertar sem sucesso mais um pouco. Entrou pelo portão de pedestres e logo lembrou da chave do motor que desligava tudo e deixava no manual. A chave ela guardou no aparador da entrada, porque sabia que um dia ia precisar, e precisou. E foi fácil, abriu como se tivesse assistido um vídeo no YouTube que lhe explicava passo a passo, mas não foi assim, só o fez e abriu o portão, guardou o carro, e travou o portão de novo. Apertou o controle de novo, só porque vai que... Mas nada.

E aquele cansaço que trouxe do trabalho ficou maior. Pegou um salgadinho, deixando a janta pra mais tarde, e foi pra cama assistir a sua novela turca que passava na Record. Já coberta naquele dia úmido, pegou o controle da TV e... nada de novo. O controle não ligava a TV. A luz também piscava. E ela mirou pra todo lado, apertou de todo jeito, afinal sabia que as pilhas tinham sido trocadas a pouco tempo, então não era pilha. Bate o controle, troca as pilhas de lugar - uma pela outra, mas nada. Desiste. Ela precisa comprar um controle novo, é essa a conclusão. Levanta para ir comprar, mas já são 18h30.

O mercadinho do português já estava fechado. Ela sabia que lá tinha controle. Ela não sabia o nome o mercado, nem do português, então chamava de mercado de mercadinho do português. E lá tinha todo tipo de coisa que você imagina. O português tinha cara de português, jeito de português e cheiro de português, se é que português tem cheiro. Na verdade se chamava José Ferreira da Lima, e Lima é um nome espanhol, e na verdade ele nascera em Aparecida do Norte, então não dava pra dizer que José era português, essencialmente. Mas tinha bigode grisalho de português, era calvo como um português e tinha uma barriga de português, embaixo da sua camiseta polo branca surrada e encardida. Enfim, estava fechado e não tinha jeito. Ficava sem controle. Só por Cristo mesmo.

E foi para o sofá, levando a coberta consigo. Esse controle funcionou e a novela já tinha começado. Só por Cristo mesmo. Cansada e cansada e cansada. Dormiu ali mesmo. Sonhou com a novela, aliás. De madrugada foi pra cama e não sonhou mais.

Às 6h30, acordou com o despertador. E sem pensar muito, ligou a TV como hábito. A TV acorda ela, ela diz. E ela levanta e se veste, sem prestar atenção no que passa ali. Ao ver a TV ligada, lembrou do controle e do português José. Desligou a TV e ligou de novo, só para testar o controle, que funcionou sem drama algum. Sentou na cama, na mesma posição de sempre - e da noite anterior - e testou de novo. Funcionou. Então foi de um pulo só até o carro. Pegou o controle do portão e apertou uma vez só. E o portão se abriu.

Misericórdia! Ela disse em voz alta.

Ficou sem saber o que fazer. Achava que estava com alguma coisa ontem. Não sabia o quê. Era energia? Meia luz ou a energia dela mesma? Será que estava doente ou era a umidade do ar? Ficou preocupada, com um pouco de medo. Rezou uma Ave Maria sibilante. Escovou os dentes e foi pro trabalho. E só quando chegou, lembrou que esqueceu de tomar café da manhã.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

O dilema dos 3 corpos, ou a pele que habito, ou mais um besteirol americano

vai ver meu erro
foi achar que minha alma
deveria ser salva
por alguém

e de destino em destino
vazo de ralo a cano e cano em cano
indo sempre num rumo qualquer
mas sem controle nenhum

quem vai salvar a minha alma?

entre corpo, espírito e alma
tenho mais dó dela
me parece frágil
e toda vez que penso nela
sinto culpa

me desculpe, alma
por toda essa coisa estranha
que eu te fiz passar

e aí fica você suja e marcada
como um mau aluno que só não soube se adequar ao sistema
como um réu que foi preso na injustiça
como um limão podre em uma árvore saudável

o espírito é forte
vive há muitas vidas
e vive para errar
e acertar
e costurar
tapar buracos
resolver problemas
salvar vidas

o espírito é o herói

o corpo é fraco
desprezível
passageiro
ignóbil
por um descuido
não vira pastel
ou pasta de dente
ou salsicha
ploc e acabou

o corpo peca
suja a alma
atrasa o espírito



quem vai salvar a minha alma?

me deixa só e eu fico sozinho

não preciso mais
de salvação

me deixa só que eu vou embora



quem vai salvar a minha alma?

me deixa só 
que eu não preciso mais
de salvação

quinta-feira, 13 de junho de 2024

O coletivo de réus julgados culpados por juris culpados em um planeta de criminosos e a dor de acordar todos os dias

havia algo de inconsistente nessa inconstância
me formei como três pontos seguintes
e de suspiro em suspiro a doce vida
se torna reticências reminiscentes de um vazio

em uma matemática fundamental eu me vejo médio
mas recontando os caminhos que me trouxeram aqui
já não sei se são montanhas - russas ou não - ou buracos
o importante é que emoções eu vivi já dizia um mestre

emocionalmente indisposto a viver emoções
levantando bandeirolas ausentes de política por um cansaço
de que tudo já foi pra merda há muito tempo
e que não há luta que valha a pena

amor e prazer e carinho e valor e todas as coisas fundamentais
como arroz e feijão e uma proteína e uns nutrientes e vitaminas
tudo envolto em dores que me faz me olhar no espelho
e ver que esse rosto redondo de corticoide não tem mais orgulho de ser
nem de sentir nem de estar, suprindo ou suprimindo, como inspiros e expiros

eu penso em silêncio:
alguém me mata
nessa quinta-feira
com cara de segunda

guardo o pensamento no bolso fundo
junto com pó e cinza e comprovantes de
compras esquecidas e sonhos prometidos

resisto
eu acho

reticência
é o que eu chamo
de normal

domingo, 12 de maio de 2024

O robô com sentimentos e sua melodia em autotune

oscilando em honestidade e mentiras plenas
em vazios e cheios tristezas e alegrias
infelicidades e esses picos extremos de prazer

honestidade nunca foi sinceridade
meu peito aberto sempre esteve fechado
minhas muralhas construídas como cebolas

protegido do mundo dentro do meu mundo
protegido de mim dentro de mim
sem saber se ao menos sinto de verdade

as mentiras que conto às vezes são verdades
e essas verdades ressoam tão reais para mim
que eu nunca imagino que eu minto

meus vazios me sugam pra dentro
e neles eu me sinto completo
pronto para passar em um portal que me leva a outro lugar

já os cheios me transbordam
e me assustam se me pegam de surpresa
mas se não me pegam sou o protagonista do show

eu achei que eu era triste e isso era eu
só que todo mundo repete que tristeza
não é característica mas sentimento

fico triste
quem sou eu
senão triste?

as alegrias sabotam a tristeza
deixam tudo normal plano monótono
porque somando os picos e vales
ficamos nessa média quieta

o oposto de felicidade é tristeza
e eu não acredito na felicidade
devia ser infelicidade
mas infelicidade não é tristeza
uma coisa não é outra
e o infeliz segue

os picos me explodem
me deixam mais triste do que as tristezas
porque por instantes tudo é tão belo
e há na beleza algo irresistível
que é combustível pra passar por cima de tudo
e com esperança e amor
sigo cego

até que o sentimento dispersa
honestamente raciocínio
e estou de novo
no limbo da linha horizontal
sem pico nem vale
sem alto nem baixo

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

e de novo e de novo e de novo
eu tinha me perdido de novo
me perdido em desesperança
e de novo tinha me perdido 

a tristeza e o pânico de mãos dadas
assumindo que a fome que eu sinto
é a fome que eu mereço
meu estômago se come
porque é de mim que se alimenta
na desesperança de um dia acabar por dentro
gota ácida por gota ácida que corrói e corrói

e de novo e de novo e de novo
eu me perdi de novo nas minhas ruas escuras
e solitárias e solidário me sinto porque eu
me perdi de novo e de novo essa fome
e essa tristeza
e esse pânico de pura desesperança

eu derreto
por dentro eu derreto
de novo
eu derreto

eu repito
sempre volto
porque é sempre o meu lugar
um lugar que é só meu
eu derreto
de novo eu derreto

de novo eu repito
e não sei o que será do amanhã
porque faz tempo que o tempo dá sinais
que não tá certo e que vai dar errado

o que será do amanhã
queria que não houvesse
de novo
eu repito
eu não queria

eu derreto
sem querer

me alimento de mim
e como canibal
me torno mais eu

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Sopa de letrinhas

um púlpito para o meu inconsciente
as palavras rugindo como santos
presas no meu corpo sem sentidos

avalio bem as letras porque não há
o que ser escrito senão letras atrás
de letras e palavras sem sentidos

um palco para a minha memória
atolada de esperança e felicidade
transbordando ceticismo e depressão

escolho bem o que dizer
porque o bem dito é inteligente
e o que vem a toa pulsa solidão

nuvens escuras atropelam meu corpo
e meus dizeres
não encontram
nada

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A faxina fez da sina um símbolo - Ou quando a Lua esquenta um corpo frio

chapado de pregabalina e com os fones 
de ouvindo judiando dos tímpanos
modelando guarda-roupas de portas coloridas
os sentimentos vão se arrumando
dentro do corpo e cada um tem o seu
lugar

as palavras que eu não digo são as
minhas Marie Kondos que guardam
os sentimentos nas devidas gavetas
e essa bagunça de pó e limo e musgo e lodo
vai aos poucos se sumindo
e aqui dentro tudo mais claro
pareço maior

os sentimentos não ficam só no coração
é claro que não ficam no coração
mas os sentimentos também não ficam
só compartimentados no meu cérebro

descem fluidos como fumaça densa pelas pernas
e logo os braços também tem seus sentimentos
e eu que nem sabia que sentia tanto

meu eu robô com seus programas todos organizados
em pastas de sentimentos alegres e contentes
e felizes e cheios de amor e esperança e essas coisas boas
que normalmente o pó e o limo e o musgo e o lodo
não me deixam nem ver

as palavras esfregando a alma até brilhar
e ali no fígado ficou uma tristeza
no rim uma gargalhada bem dada
na boca dormente um beijo bem dado
na barba comprida um tempo passado
nos olhos um tempo futuro
nas pálpebras pesadas a decepção de ser
nos dedos A Palavra

e outras tantas 
coisas em volta da 
minha cabeça como 
uma auréola de mim

finalmente santo
só porque um dia
senti



ela me perguntou qual era minha melhor memória
de nós dois
e eu não soube responder

me senti procurando uma blusa numa torre de roupas
roupas na cama e roupas na escrivaninha e roupas na cadeira
roupas penduradas e roupas dobradas e roupas jogadas
e eu buscando uma blusa

e bendita a palavra que
leva tudo ao seu bendito lugar
o pó e o limo e o musgo e o lodo
viram logo loco lugar
espaço pra me fazer sentir
e lembrar e esticar as costas e os braços
em uma sensação indescritível de
liberdade



pois é quando o gato finalmente a aceitou
o gato entrou debaixo das cobertas sobre ela
e ela que nem criança ficou toda emocionada

não sabia bem o que fazer
não queria se mexer
sorria largo de olhos marejados

passando os dedos bem de leve
sobre a cabeça daquele
gordo lindo que já dormia pesado

na nossa memória de nós dois
não sou nem protagonista
nem coadjuvante
mas só um espectador
que gosta tanto
que essa memória
exista



as memórias sempre tem som
os sentimentos, memória



lembro dela com o gato

como uma música calma

um piano lento
agudo
e triste