Haviam dois anjos brigando na rua. A multidão estava preocupada, pois nunca tinham visto anjos, nem uma luta tão sangrenta. Um dos anjos era alto, loiro, de olhos claros. Vestia uma tunica branca que lhe ia dos pés a cabeça. Era um lindo anjo de asas brancas e enormes. O outro era baixo, magro, cabelo preto e olhos castanhos. Vestia uma cueca suja de terra. Era um bom anjo de asas pequenas e desengonçadas e negras como o fim do mundo.
O anjo branco estava com os punhos machucados dos inúmeros socos que tinha dado no anjo negro. E o anjo negro sangrava e levantava e caia e levantava, sempre gemendo baixinho e chorando, não por dor, mas pelo mundo inteiro. O mundo estava fodido, ele sabia disso. O anjo branco gritou para que o negro não se levantasse mais, mas o anjo negro não ouviu. Assim que se levantou, foi derrubado, e o anjo branco, sorrindo lindamente, rasgou as pequenas asas do pobre anjo. Abriu suas enormes asas e seguiu em direção ao Sol.
Uma garota de cabelos negros e saia vermelha sentou-se ao lado do anjo. Ela disse que o anjo tinha que viver. E o anjo disse que as suas pequenas asas negras tinham sido arrancadas da pele de anjo dele. Ela repetiu três vezes: "Louco assombrado, perdido num pesadelo" E o anjo quis saber qual era o nome da garota. E ela sumiu para sempre, deixando o anjo com saudades, para sempre.
Entrei em casa suado, louco por um copo de água. Na geladeira só haviam cervejas, então abri uma lata gelada. Sentei no sofá, na sala escura, e ouvi um avião passando. Ouvi um ônibus lotado tremendo minhas janelas. Ouvi a vizinha gemendo. Ela sentia amor. Mas não sabia o que era amor. O amor morreu e meus olhos se encheram de lágrimas. Lágrimas pesadas que arrastavam o sangue do rosto para os lábios abertos. Peguei minhas asas quebradas e guardei num armário. Eu tentava encostar minhas costas no encosto do sofá, mas minha pele, que agora não era mais de anjo, ardia intensamente. Pus a mão onde ficavam as asas e um sangue negro escorria. Ele fedia a morte. Mas a morte não era tão ruim quanto o fim do mundo. Eu queria ter morrido há uns dois mil anos atrás.