Era uma vez uma guerra. Uma guerra como tantas outras, então aqui não vou entrar em detalhes. Era só mais uma guerra, onde de um lado havia um herói e do outro um vilão, embora a verdade fosse muito mais profunda que um maniqueísmo barato. E de nenhuma forma estou dizendo que o herói é vilão e o vilão é herói, por favor. Só estou dizendo que era só mais uma guerra. Como tantas outras. Aquelas que inocentes morrem e inocentes matam, como uma prova real de uma equação: de um lado dá zero, do outro também.
Pois havia um bruxo. Vamos chamar de bruxo. Ou de mago, se preferir. Tanto faz, chame do que quiser. Harry Potter, se assim preferir. Mas que fique claro: o bruxo não era nem um pouco parecido com o da J. K. Rowling. Vai ser difícil explicar, mas era um homem muito baixo, talvez menor que um metro e trinta. E talvez não fosse homem de forma alguma. Tinha um bico comprido parecendo a máscara de um médico da peste bubônica, mas isso não era máscara coisa nenhuma. Sua pele era cheia de penugem preta e ele era magro magro magro e vestia um sobretudo algo entre preto e roxo que lhe parecia enorme, mas que na verdade era pouco maior que uma camiseta masculina tamanho M. No seu rosto, a penugem tomava um tom bem claro de lilás, da mesma cor do bico muito comprido, como um tucano.
E esse bruxo enxergava a guerra da janela de casa. Uma torre que era mais alta que as nuvens com uma janela que lhe mostrava o mundo todo. E ele assistia a guerra entristecido, se sentindo impotente como se nunca tivesse visto guerra antes. E ele viu muitas. E pôs seu bico em algumas delas e matou gente e reviveu gente e criou o caos na Terra pra trazer a paz no mundo. Mas dessa vez, ele achou que as coisas se resolveriam sozinhas. E elas não se resolveram.
Na janela, uma criança tenta dormir com o som de bombardeios próximos, a luz entra no quarto da criança como raios e o som como trovões, e o mesmo movimento de luz e som acaba na casa do bruxo: bombas e luz e barulho. A criança chora e sua mãe lhe faz um carinho. A criança quase dorme e uma bomba treme o país. A criança chora e a mãe lhe faz um carinho. A criança quase dorme e uma bomba treme o país. A criança chora e o bruxo se decide: eu vou intervir. Procura na estante da sala um livro bem grosso e nas folhas bem grossas procura algo específico.
E canta. Como um pássaro. Ou um monge. Ou um mago. E o feitiço chega à menina assustada e ela dorme. E sua mãe se aconchega em um abraço e em dois segundos sonha com um campo florido e sua filha correndo com um cachorrinho.
O bombardeio não cessa. Pelo contrário. Chega mais perto do prédio em que mãe e filha dormem. As paredes tremem e soltam poeira como se fossem se desfazer como castelo de areia ao vento forte. O bruxo se desespera. Entende que fez a escolha errada quando o pai entra no quarto pra chamar as duas pra fugir pro bunker. Mas as duas sonham o mesmo sonho e por dois minutos em semanas entendem o que é paz.
O bruxo fecha suas cortinas. Não quer mais ver. Troca de canal. E ao abri-las de novo, soldados regarregam mísseis que são lançados um atrás do outro. Então o bruxo olha pro livro de novo e canta a mesma magia. E assim que os soldados dormiram, ele fechou as cortinas.
E as abriu de novo. E cantou mais uma vez. E fechou e abriu e cantou até que sua voz falhasse e uma nação inteira, junto com seus invasores, sonhavam a mesma coisa: um campo florido e um pouquinho de paz. Fora dali, ninguém entendeu a trégua. E os noticiários do mundo diziam: a guerra acabou? As tratativas estão surtindo efeito? O que significa essa trégua para a economia do mundo?
Cansado, o bruxo foi dormir. No dia seguinte, a terra tremida levava inocentes consigo, prédios desabaram e crianças se tornaram órfãs. Era só mais uma guerra. Triste, como todas as outras.