Começa numa praia num dia de inverno, a luz do sol se pondo bem quente enquanto um vento forte e frio judia a pele. Nenhuma outra pessoa, mas pássaros voando e revoando e o som limpo das ondas do mar. Uma paz simultaneamente quente e fria toma conta de mim enquanto eu sinto a areia fina e gélida entre os meus dedos dos pés.
Um garoto vem a mim, vestido com a camiseta branca por dentro de calças altas; seu cabelo escuro em corte surfista - é como o famoso corte tigela era chamado há cento e vinte e cinco anos atrás - me dizia algo que eu não soube ouvir. Ele me estende a mão e me dá uma pequena espada, em tamanho de adaga, mas em formato de espada.
- Que espada bonita! - Eu digo a ele.
- Aham. É pra você. - Ele me responde.
- Uau, obrigado! Tem certeza? Ela é muito linda pra você dar pra mim...
- Aham. Ela veio até mim e cumpriu seu papel. Agora eu passo ela pra você e ela vai te ajudar, como me ajudou.
- Ah, muito obrigado! Você sabia que é meu aniversário hoje?
- Não sabia, mas achei que eu precisava dar ela pra você. Feliz aniversário. - Ele sorriu envergonhado.
- Como é teu nome, menino?
- Thomas.
- O meu nome também é Thomas!
- Oi, Thomas.
- Menino, muito obrigado pela tua espada. E que quando você crescer, encontre uma espada maior, tão bonita quanto essa, e que ela te proteja de tudo que vier!
- E que essa espada te proteja também! Tchau! - E saiu correndo.
Eu me pus a andar no outro sentido, segurando forte aquela espada guardada no bolso canguru do meu moletom, achando tudo aquilo muito absurdo e ao mesmo tempo engraçado e sem nenhuma sombra de dúvidas muito fofo. Talvez nem um quilômetro a frente, um senhor de bermuda jeans aparece de uma rua que desembocava na praia. Não era alto, mas era magro, cabelos compridos e barba comprida, ambos muito brancos contrastando com sua pele morena.
- Thomas! - Ele me chama de longe.
- Opa!
- Feliz aniversário!
- Opa, valeu! - Sorrio envergonhado, sem fazer a menor ideia quem seria aquele senhor que vai chegando mais perto.
- Vem cá, quero te dar um presente. - E do bolso tira uma caneta tinteiro. - Eu quero que você escreva tuas verdades mais profundas com essa caneta. E que elas signifiquem a verdade pra quem lê-las também. E se lembre bem: mentiras também podem ser verdade! Então cuidado com as verdades que você conta!
- Nossa, não esperava por isso. Muito obrigado. É curioso que eu gosto de escrever. E mais curioso ainda que eu acabei de ganhar uma espada de um menino.
- Eu sei. É nosso aniversário.
- Quê?
- Vai dizer que você não percebeu que aquele era você e que eu também o sou?
- N... Não sei? Acho que... Não sei se isso faz sentido.
- É que esse lugar é mágico.
- Então, se nós três somos um só... Tenho algumas perguntas...
- Claro...
- Por que eu não me lembro de entregar uma espada pro Thomas adulto? E você lembra quando o Thomas velho te deu essa caneta? E isso significa que você já ganhou essa caneta? Aliás, é a mesma caneta? E você escreveu boas verdades com ela? Desculpe, me empolguei com a possibilidade de sermos o mesmo.
- Hahaha. Eu sei bem! É confuso, não é? Bom, tem coisas da tua infância que você não lembra, mas que eu lembro. É porque a memória não é linear, você não vai esquecendo as coisas ao longo da vida. Tem coisas que você se lembra só depois de velho, coisas que você já tinha esquecido. Você não pode ficar preso nas concepções de passado, presente e futuro, porque elas não vão fazer você se entender melhor, nem entender o mundo melhor. E sim, eu lembro de ganhar a caneta, eu ganhei uma caneta. Se é a mesma caneta, não faz sentido nenhum eu te contar, porque não faz nenhuma diferença pra você. E as verdades, é melhor eu não contar elas, porque se eu contar tudo o que escrevi, você não vai querer escrever, achando que são ideias roubadas e que elas não são tuas. É claro que são, mas prefiro que você as tenha sozinho.
- O que é esse lugar?
- Uma praia.
- Agora é verdade? Agora existe?
- Você sabe tão bem quanto eu.
- Mas eu não sei.
- Claro que sabe.
- Eu juro que não sei.
- Ou sou eu que não sei? - Sorri um sorriso extremamente sincero e caloroso. Eu sorrio com ele. - Feliz aniversário, Thomas. Use a espada para se proteger e a caneta para atacar, assim você se tornará invencível.
- Muito obrigado, Thomas. Sabe, eu não me impressionei de nenhuma forma com o Thomas do passado. Mas você me impressionou.
- Por quê?
- Não sei. Talvez por você existir? Ou talvez por você ser alguém que eu não esperava que fosse? Enfim, gostei muito de você.
- Claro que gostou. A autoestima sempre foi o meu calcanhar de Aquiles. - Riu. - Eu existo, não se preocupe. Aliás, pare de se preocupar. Eu existo. - Me abraçou. Ao me soltar, não olhou pra mim, mas continuou andando na praia no sentido contrário do que eu ia.
Nada disso fazia sentido. Mas eu sorria largo, apertando forte a espada com a mão esquerda e a caneta com a mão direita, dentro do bolso do moletom. Eu percebi que o sol ainda se punha. Olhei para trás e parece que o sol não tinha se movido nem um pouco. Lá longe andava um senhor de cabelos brancos. Eu continuei caminhando. E toda vez que eu respirava, uma onda quebrava na praia. E eu fui respirando cada vez mais fundo, enquanto as ondas iam batendo cada vez mais fortes. Eu fiquei com medo de sair daquela praia, de ela nunca ter existido. E cada vez mais ansioso, respirava cada vez mais fundo. Até que o som do mar tomou conta de tudo. Eu abri os olhos e estava em casa de novo.