segunda-feira, 2 de maio de 2011

Purgatório

Era uma quarta feira normal, fazia frio e o céu estava nublado. Quarta feira de inverno com cheiro de café, como todas as outras quartas feiras de inverno com cheiro de lã. Na casa da vó, a panela de pressão apitava. A canja estava quase pronta. Odeio o crepúsculo no inverno. Me dá saudade da infância. Duas grandes janelas que abriam para fora davam para a rua. Fazia silêncio, de vez em quando um telefone tocava. Meu coração batia forte e eu podia ouví-lo alta e claramente. Os passantes na rua e a minha vó, na casa dela, podiam ouví-lo alta e claramente. Abri uma das janelas, a outra fechei. Peguei o extintor e joguei-o na janela fechada. E o que eu temia aconteceu, o vidro não se quebrou e eu ia ter que pular pela janela aberta, o que me obrigava a pular sentado. Meu medo de pular sentado era cair em pé, quebrar as pernas e elas perfurarem meus intestinos. Eu sabia que 22 andares não iam me matar se eu caísse de pé. Eu tinha que cair de cabeça, para fraturar o pescoço, ou de costas, para que minhas costelas quebradas perfurassem meus pulmões e coração. Alguém pigarreou. Sentei na janela e disse adeus à vida. Me soltei e com os pés na parede, do lado de fora do prédio, me empurrei para frente.
Era lento. Como se eu estivesse mergulhando em água. Eu não respirava. Lá embaixo, ninguém me via cair. E eu caia. Rápido. Muito rápido. A cidade já fora mais colorida. A vida também. A calçada ia crescendo e eu ia descobrindo seus detalhes: algumas rachaduras, chicletes brancos e rosas e vermelhos e verdes, bitucas de cigarro. Será que eu vou morrer? Que medo de não morrer. E tudo ficou escuro. Preto.

Senti uma pressão nas costas. O chão molhado. Um cutucão no ombro direito.
Abri os olhos: Thomas, o doutor está esperando.