- Bom dia. - Diz o psicólogo, sentado em sua grande poltrona, olhando suas anotações numa agenda que imitava couro de cobra.
- Bom dia, doutor. - Ele diz enquanto senta no modesto sofá dos pacientes.
- Como vai você?
- Vou bem. E você? - O psicólogo o fita por algum momento.
- Você não me parece bem.
Ele sorri enquanto olha para o colo, evitando os olhos do seu amigo particular.
- Vamos começar de novo. Como vai você?
- Vou bem... E... E o senhor?
- Estou bem. Mas por que você não está bem?
- Falei que estou bem.
- E eu falei que você não me parece bem.
Fez se um pouco de silêncio. O psicólogo olhava a alma dele por cima de óculos quadrados pendurados na ponta do nariz gigantesco.
- Acho que estou doente.
- O que tem?
- Não sei. Estou mal do estômago há dias.
- Foi num médico?
- Não, acho que não é nada.
- Está tomando alguma coisa?
- Não.
- Nem um omeprazol?
- Não.
- Por quê?
- Estou cansado...
- De quê?
- De tudo.
- Por exemplo?
- Sei lá. Eu me pego olhando pela janela...
- Hm...
- E eu percebo que eu estou lá. Olhando tudo aquilo. Sentindo o Sol queimar a minha pele.
- E o que você vê?
- A rua em que trabalho.
- E?
- E nada.
Faz-se mais um pouco de silêncio.
- Enfim, o ponto é que eu percebo que estou olhando pra janela. E o Sol está me queimando.
- O problema é o Sol?
- O problema é que eu percebo que estou na janela só depois de o Sol me queimar. Eu fico um longo período de tempo olhando lá fora.
- Olhando alguma coisa?
- Não sei... Acho que tudo.
- Pensando em alguma coisa?
- Não sei... Acho que nada.
- Esperando alguma coisa?
- Acho que sim...
- O quê?
- O fim do mundo, eu acho.
O médico anota alguma coisa em sua caderneta.
- Você acredita no fim do mundo? - Pergunta o paciente doutor entre duas frases anotadas.
- Não.
- E por que você o espera?
- Acho que queria que ele acabasse logo.
- Por quê?
- Tenho a impressão que não gosto dele.
- Não?
- Não. Nada me satisfaz.
- Anda insatisfeito?
- Ando. Ando demais. Meus pés doem. Meu estômago dói. Não aguento mais andar. - O psicólogo sorri. - É nessa hora que eu como. Como sem parar. Como um animal esperando o inverno mais frio dos últimos 48 anos.
- Depois de andar?
- Depois de sentir muita dor no estômago.
- Por que?
- Porque não quero comer antes.
- Não sente fome?
- As vezes sinto. Só não quero comer. Nenhuma comida me satisfaz.
- Nem um churrasco?
- Comeria um churrasco. - Os dois abrem sorrisos.
(...)
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
Armadilha social
Já faz algum tempo que me guardo os textos, as poesias e as palavras soltas. Nesse novo mundo, de informação rápida e tecnologia eficiente (nos limites que lhe cabe elogio), a curiosidade se confunde com o aprendizado e o conhecimento, com a espionagem. Pessoal e público são como figurativo e abstrato, que de longe são bem distintos, mas em alguns pontos se mesclam e se tornam uma coisa só, uma coisa confusa. Hoje eu não sei me expressar via rede social. O que é ideal? O que é exagero? O que é meu e o que é do mundo? O aniversário ou surpresa especial não pode passar batido, dá-lhe foto e um longo e caloroso texto que resume a essência de um amor, seja qual for a classificação deste. Todo mundo tem uma opinião sobre o tema do momento e todo mundo consome informação interessante que valha o compartilhamento.
Eu sou poeta. Sou literato. E quase todos os meus favoritos escritores só obtiveram a essência das suas próprias vidas através de desumana contorção, que sai impressa em tinta e papel ou pixel e tela. É dos poetas as sinceridades deslavadas. Por mim, me esvaziava os sentimentos e as sensações. As impressões e as faltas delas. As verdades e as mentiras. As expectativas e as decepções. Me esvaziava em pura sinceridade literária, com remetentes explícitos em entre linhas, dizendo em alto e bom tom tudo que eu tenho pra dizer pra você. Abria o peito sem esperar reflexo algum, sem nunca imaginar que depois daquele segundo, o do peito aberto, chegaria um próximo. Vomitava o coração naquele eterno último segundo, sem dor nem morte, nem prazer nem vida.
É que eu não sei o que é meu. O que é nosso. Pra mim as histórias nunca têm donos. Têm cheiro, têm sabor, têm cor, têm nome e têm voz. As vezes gritam, as vezes gemem, as vezes choram. Lágrimas sem dono, só com poesia.
Portanto me calo. Guardo-me inteiro como guardião de uma multidão de segredos. Os que contam o teu gosto, os que contam o teu cheiro, os que contam o meu peito. Só pra mim. Batendo asas pra lá em pra cá em intenso furacão.
Pequenos segredos
em forma de borboletas negras
e grandes desejos
como falcões vermelhos,
voando pelos meus órgãos
em sincronia com
os meus dedos
que se batem no ar
fingindo escrever
que preciso de você.
Mastigando a vontade
pra ver o tempo passar.
Eu sou poeta. Sou literato. E quase todos os meus favoritos escritores só obtiveram a essência das suas próprias vidas através de desumana contorção, que sai impressa em tinta e papel ou pixel e tela. É dos poetas as sinceridades deslavadas. Por mim, me esvaziava os sentimentos e as sensações. As impressões e as faltas delas. As verdades e as mentiras. As expectativas e as decepções. Me esvaziava em pura sinceridade literária, com remetentes explícitos em entre linhas, dizendo em alto e bom tom tudo que eu tenho pra dizer pra você. Abria o peito sem esperar reflexo algum, sem nunca imaginar que depois daquele segundo, o do peito aberto, chegaria um próximo. Vomitava o coração naquele eterno último segundo, sem dor nem morte, nem prazer nem vida.
É que eu não sei o que é meu. O que é nosso. Pra mim as histórias nunca têm donos. Têm cheiro, têm sabor, têm cor, têm nome e têm voz. As vezes gritam, as vezes gemem, as vezes choram. Lágrimas sem dono, só com poesia.
Portanto me calo. Guardo-me inteiro como guardião de uma multidão de segredos. Os que contam o teu gosto, os que contam o teu cheiro, os que contam o meu peito. Só pra mim. Batendo asas pra lá em pra cá em intenso furacão.
Pequenos segredos
em forma de borboletas negras
e grandes desejos
como falcões vermelhos,
voando pelos meus órgãos
em sincronia com
os meus dedos
que se batem no ar
fingindo escrever
que preciso de você.
Mastigando a vontade
pra ver o tempo passar.
sábado, 24 de agosto de 2013
(Des)Aceleração
as vezes eu paro
numa frenagem abrupta
que me machuca o corpo
tenho receio de acelerar de novo
a adrenalina
de aumentar
a velocidade
não me seduz
mais
ficar parado
é tão
bom
sabendo que
eu nunca
vou me machucar
de novo
o tédio me aponta os atrasos
os erros
as faltas
eu preciso acelerar
senão o mundo
acaba
sem eu nem
perceber
que preguiça
por mim
dormiria
dias
e
dias
e
dias
de
sonolência
eu bocejo
numa frenagem abrupta
que me machuca o corpo
tenho receio de acelerar de novo
a adrenalina
de aumentar
a velocidade
não me seduz
mais
ficar parado
é tão
bom
sabendo que
eu nunca
vou me machucar
de novo
o tédio me aponta os atrasos
os erros
as faltas
eu preciso acelerar
senão o mundo
acaba
sem eu nem
perceber
que preguiça
por mim
dormiria
dias
e
dias
e
dias
de
sonolência
eu bocejo
quinta-feira, 22 de agosto de 2013
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
sábado, 10 de agosto de 2013
sábado, 13 de julho de 2013
Eu só queria você
nas minhas insônias
já te chamava
por uma monossílaba
que era o meu jeito
de te chamar
e te amava com
todas as minhas unhas
e todos os meus dentes
feit'um bicho
que cuida do que é dele
mas uma hora o sono vem
o sonho vem
o Sol vem
e o sonho vai
e todo o meu ardente
amor
se acaba em fútil
desejo
já te chamava
por uma monossílaba
que era o meu jeito
de te chamar
e te amava com
todas as minhas unhas
e todos os meus dentes
feit'um bicho
que cuida do que é dele
mas uma hora o sono vem
o sonho vem
o Sol vem
e o sonho vai
e todo o meu ardente
amor
se acaba em fútil
desejo
sexta-feira, 28 de junho de 2013
Homo sapiens sapiens sapiens sapiens...
Disse, com a voz pra janela, pro vento me trazer as palavras de tão longe, que não me aguentava mais. Disse que se acostumou com as crianças e que não queria saber o que eu achava da situação brasileira, e nem o que ela mesma achava. Chega de tecer opiniões. Quero só os meninos, ela disse por último. Então fez-se o silêncio. Por quase sete centésimos de segundo, cheguei a preferir que a televisão estivesse ligada e esse silêncio não gelaria todo o ar que tinha em volta de mim. Mas não, eu odeio televisão. Aquela da sala é pra assistirmos filme e jogarmos video game. Não pega nenhum canal.
Mas, por quê? O sonâmbulo que acorda já em pé, num susto, não entende absolutamente nada. Como assim?
Eu vou embora, ela continuou. Não! Por que vai embora? Eu tô cansada de pensar pra te agradar. Me explique, eu respondi. Eu não preciso explicar nada pra você, é exatamente disso que eu tô cansada. De que eu exija explicações? Você acha que eu fico pegando no teu pé por explicações? Sou tão chato assim? Não quero mais explicar nada pra ninguém. Não quero mais ter opinião. Não quero mais ter que fazer minha cabeça funcionar às 7h da manhã enquanto você faz café e começa a conversar como se estivéssemos numa mesa redonda, debatendo sobre a porra evolução da espécie ou entendendo como funciona a merda do filtro da cafeteira! E você não gosta de conversar? Claro que gosto! Eu não te entendo. Qual é o meu defeito? Dá pra concertar? Vamos melhorar o que está ruim? PARA! É ISSO QUE EU NÃO AGUENTO MAIS! EU NÃO QUERO PENSAR PRA TE RESPONDER! Você não quer pensar nunca mais? NÃO! E com quem você vai se relacionar? Porque você vai conseguir viver sem pensar quando estiver sozinha, mas alguém vai aparecer... Quero só as crianças. Não quero mais ninguém. O filtro da cafeteira... O que tem? A gente só conversou sobre o filtro da cafeteira pra explicar pro piá como funciona. É ele que quer saber porquê o céu é azul, o que é o amor e como faz um lápis. Por quê? Por quê? Por quê? Não comigo. Quer dizer que com você eles não pensam? Não. O que vocês fazem? Sorrimos, brincamos, eu faço carinho neles... Que nem gatos? Quem nem nós dois, mas há muito tempo atrás. Que nem gatos...
Ela começa a arrumar a mala. Eu tento argumentar. Você percebe que você está sendo inconveniente? Inconveniente porque não deixo você viver uma loucura que te bateu sabe lá Deus quando...? Hoje de tarde, que seja... Eu disse que não quero mais pensar e você fica aí, abanando esse cérebro na minha cara, dizendo "PENSA COMIGO!" Sim, você não tá pensando no que tá fazendo. Ou tá? Porque se estiver, fico mais preocupado ainda... Claro que não estou. E você devia fazer isso também. O que? Ir embora? Parar de pensar. Agir. Falta atitude? Sobra pensamento. Então você acha que eu preciso parar de pensar e agir? Sim... Eu não consigo pensar numa resposta. Não consigo pensar em nada coerente. Ela fecha a mala.
Vai no quarto dos meninos: Vamos? E o mais novo desliga a televisão. O outro pede pra ela esperar. Esperar o que? Só estou terminando de passar um negócio pro video game, ele diz. Ela fica na porta, batendo o pé. O mais novo se aninha nas pernas dela. O mais velho desliga o computador e todos saem do quarto. Cada um com sua mochila já previa e calculadamente preparada.
Tchau, pai. Até amanhã. O primeiro diz. Me dá um beijo na bochecha. O mais novo não diz nada, só me beija. Estou indo pra casa da minha mãe. Pode ligar lá, pra falar com os meninos. Não vai me proibir de vê-los, vai? Que horror. Você acha que eu sou o quê?, sorrindo aparentemente sem jeito. Me deu um selinho rápido e foi abrindo a porta.
Levantei do sofá e segurei-a pelos braços. Tentei beijá-la, mas ela se contorce como uma cobra arisca, seguro-a e nossas línguas se tocam numa breve e casual dança. Ela sorri um sorriso vermelho e envergonhado da porta do elevador e desaparece.
Me deixando só com o corredor frio e vazio.
A luz automaticamente se apaga.
Tranco a porta.
Bato no fundo da carteira e só sobra um último cigarro.
Apago a luz.
E me sobram os estalos da ponta em chamas.
Percebo que meu cérebro
não para.
Não
para.
Esboço um
sorriso,
pensando que há
um quê de
patético
em só
pensar.
Mas, por quê? O sonâmbulo que acorda já em pé, num susto, não entende absolutamente nada. Como assim?
Eu vou embora, ela continuou. Não! Por que vai embora? Eu tô cansada de pensar pra te agradar. Me explique, eu respondi. Eu não preciso explicar nada pra você, é exatamente disso que eu tô cansada. De que eu exija explicações? Você acha que eu fico pegando no teu pé por explicações? Sou tão chato assim? Não quero mais explicar nada pra ninguém. Não quero mais ter opinião. Não quero mais ter que fazer minha cabeça funcionar às 7h da manhã enquanto você faz café e começa a conversar como se estivéssemos numa mesa redonda, debatendo sobre a porra evolução da espécie ou entendendo como funciona a merda do filtro da cafeteira! E você não gosta de conversar? Claro que gosto! Eu não te entendo. Qual é o meu defeito? Dá pra concertar? Vamos melhorar o que está ruim? PARA! É ISSO QUE EU NÃO AGUENTO MAIS! EU NÃO QUERO PENSAR PRA TE RESPONDER! Você não quer pensar nunca mais? NÃO! E com quem você vai se relacionar? Porque você vai conseguir viver sem pensar quando estiver sozinha, mas alguém vai aparecer... Quero só as crianças. Não quero mais ninguém. O filtro da cafeteira... O que tem? A gente só conversou sobre o filtro da cafeteira pra explicar pro piá como funciona. É ele que quer saber porquê o céu é azul, o que é o amor e como faz um lápis. Por quê? Por quê? Por quê? Não comigo. Quer dizer que com você eles não pensam? Não. O que vocês fazem? Sorrimos, brincamos, eu faço carinho neles... Que nem gatos? Quem nem nós dois, mas há muito tempo atrás. Que nem gatos...
Ela começa a arrumar a mala. Eu tento argumentar. Você percebe que você está sendo inconveniente? Inconveniente porque não deixo você viver uma loucura que te bateu sabe lá Deus quando...? Hoje de tarde, que seja... Eu disse que não quero mais pensar e você fica aí, abanando esse cérebro na minha cara, dizendo "PENSA COMIGO!" Sim, você não tá pensando no que tá fazendo. Ou tá? Porque se estiver, fico mais preocupado ainda... Claro que não estou. E você devia fazer isso também. O que? Ir embora? Parar de pensar. Agir. Falta atitude? Sobra pensamento. Então você acha que eu preciso parar de pensar e agir? Sim... Eu não consigo pensar numa resposta. Não consigo pensar em nada coerente. Ela fecha a mala.
Vai no quarto dos meninos: Vamos? E o mais novo desliga a televisão. O outro pede pra ela esperar. Esperar o que? Só estou terminando de passar um negócio pro video game, ele diz. Ela fica na porta, batendo o pé. O mais novo se aninha nas pernas dela. O mais velho desliga o computador e todos saem do quarto. Cada um com sua mochila já previa e calculadamente preparada.
Tchau, pai. Até amanhã. O primeiro diz. Me dá um beijo na bochecha. O mais novo não diz nada, só me beija. Estou indo pra casa da minha mãe. Pode ligar lá, pra falar com os meninos. Não vai me proibir de vê-los, vai? Que horror. Você acha que eu sou o quê?, sorrindo aparentemente sem jeito. Me deu um selinho rápido e foi abrindo a porta.
Levantei do sofá e segurei-a pelos braços. Tentei beijá-la, mas ela se contorce como uma cobra arisca, seguro-a e nossas línguas se tocam numa breve e casual dança. Ela sorri um sorriso vermelho e envergonhado da porta do elevador e desaparece.
Me deixando só com o corredor frio e vazio.
A luz automaticamente se apaga.
Tranco a porta.
Bato no fundo da carteira e só sobra um último cigarro.
Apago a luz.
E me sobram os estalos da ponta em chamas.
Percebo que meu cérebro
não para.
Não
para.
Esboço um
sorriso,
pensando que há
um quê de
patético
em só
pensar.
sábado, 22 de junho de 2013
quarta-feira, 19 de junho de 2013
terça-feira, 7 de maio de 2013
Um belo dia de outono
Olá e era a garota mais linda do mundo. O que eu queria? Possivelmente me casar, agora mesmo. Sem nem te perguntar se aceita. Casamento forçado entre dois desconhecidos, só porque te amo desde esse maravilhoso segundo. Amo teus olhos e teus cílios e tua boca e teu nariz perfeito enfeitado com uma argola. E amo teu cheiro e não me importo se você não quer casar. Também não ligo se não gostar do meu sorriso, ou da minha voz, ou das besteiras que eu tenho pra te dizer, pois basta o meu amor, um amor tão grande que vale por dois.
Ela me devolve o troco em moedas e me sorri um boa tarde. Saio da loja saltitante, à la Leonardo DiCaprio, de coração quente.
Ela me devolve o troco em moedas e me sorri um boa tarde. Saio da loja saltitante, à la Leonardo DiCaprio, de coração quente.
sábado, 20 de abril de 2013
Congelado
- Sonhei com você, nessa noite.
- Sonhou? E como foi o sonho? - Ela sorri.
- Sonhei que nós namorávamos. Ou coisa parecida. - Ela fica vermelha naquele sorriso largo.
- E o que aconteceu?
- Bom, eu lembro que eu acordava...
- Hahaha. Você acordou no sonho?
- Aham.
- Tá, continua.
- Eu acordava e tava frio pra caralho. Então eu fui lá fora.
- Lá fora onde?
- Lá fora do lugar que eu tava.
- E onde você tava?
- Sei lá. Uma casa de madeira. De móveis de madeira. Tudo de madeira.
- O colchão também? - Que burra, eu pensei.
- Não, o colchão não. Nem as cobertas de lã, que eram dum xadrez vermelho.
- Hmm. - Ela me olhava interessada.
- Daí eu fui lá fora. Era uma sacada bem grande. Um terraço coberto. E no terraço, você estava deitada num sofá, coberta com outra coberta vermelha.
- Hmm.
- Então eu fui sedento pra pegar você.
- Hahahaha. - Ela ri, vermelha de novo, desvia o olhar.
- Mas você disse que não, pois o teu pai podia subir e ele não ia gostar de nos ver juntos.
- Empata foda. Hahahaha!
- Sim! Foi o que eu pensei. O engraçado é que eu pensei no seu pai. Eu vi ele dentro da minha cabeça. Como se eu visse os meus pensamentos.
- Hãn? - Fez uma careta.
- Eu sabia como era o teu pai. Mas nunca vi o teu pai.
- E como era o meu pai?
- Era o pai da minha primeira namorada.
- E eu, será que não era tua primeira namorada também? - Fez cara de cu.
- Não, você era você e o teu pai era o pai da minha primeira namorada.
- E daí?
- E daí você disse que era pra eu deitar do outro lado do sofá, então eu me aconcheguei perto dos teus pés.
- Tipo um 69?
- Exatamente como um 69.
- Mas sem...
- Não, com meias, aliás.
- Ah...
- Pois tava chovendo e a minha parte do sofá ficava descoberta. Então chovia em mim.
- Chuva forte?
- Não, quase imperceptível, mas bem gelada.
- E daí?
- E daí eu morri.
- Hãn? - Fez careta de novo.
- É, eu morri congelado.
- Assim? Acabou o sonho?
- Não, você percebeu que eu morri congelado, gritou, chamou pai.
- Mas você disse que conseguiu ver os teus pensamentos. Eu imaginei que era em primeira pessoa.
- Sim, era em primeira pessoa...
- E o que aconteceu quando você morreu? Mudou a câmera?
- Não, continuou em primeira pessoa.
- Como você não acordou?
- Sei lá.
- Isso não faz sentido.
- Não mesmo. Eu sabia que eu tava morto. Acredita?
- Não.
- Pois eu morri congelado, de olho aberto, vendo tudo.
- Que horror.
- Sem o seu amor e o seu carinho.
- E o meu calor.
- Sim.
- E o que acontece depois?
- Acordei com frio, me cobri e voltei a dormir.
- Nossa... Não gostei do sonho. Por que me contou?
- Porque você perguntou. - Ela fica quieta. - Vem cá, me esquente antes que eu morra. - Nos aconchegamos numa concha, sem falar mais nada.
terça-feira, 16 de abril de 2013
Destino d'alma
Se pudesse escolher qual o destino da minha alma na minha próxima vida, escolheria um gato. Imagino que não possamos escolher o destino da alma, mas suponhamos que seja, então eu escolheria ser um gato. Aliás, se o destino da alma pudesse ser escolhido, não entendo como resolvi ser gente. Vai ver fui cachorro e os cachorros adoram os humanos. E vai ver é por isso que não gosto tanto dos cachorros, como dos gatos. Pois é, faz sentido, fui cachorro e escolhi ser humano, agora sou humano e escolho ser gato.
Então vamos às minhas filosofias felinas. Talvez deitar-me sob o sol quente nesta tarde fria pudesse ser a mais valiosa das oportunidades. E quando meus pelos ficassem quentes demais, ia para a sombra, até que esfriassem e eu pudesse aproveitar o calor solar novamente. E viveria nesse ciclo eterno até que o dia acabasse. Não especifiquei as condições da minha vida gatuna, mas é claro que gostaria de ser um gato de apartamento, castrado e bem nutrido. Pois minha alma canina deve ter se esquecido de especificar a quem quer que nos atenda quando preenchemos as papeladas todas pra sairmos do céu (chamo de céu, mas fica em aberto o local, afinal me é de completo desconhecimento) que queria ser um menino rico e mimado, para crescer em um homem rico e mimado. Rico e esportista. Os cachorros adoram correr, então suponho que minha alma canina gostaria dum corpo humano que pudesse satisfazer essa necessidade intensa de correr atrás de bolas enquanto babo. Não obstante, meu esbelto corpo (e cérebro, não alma, que fique claro) não é fã de nenhum tipo de esporte. Então queria ser um gato de apartamento (talvez essa seja a parte mais importante: de apartamento, devido à longevidade e à segurança, além de todo o contexto de abrir mão de qualquer preocupação), castrado e bem nutrido.
Os homens me perguntariam o motivo de ser castrado, digo os homens, pois as mulheres não se importam tanto com as bolas e com o sexo como se importam os homens. Então respondo aos homens: o gato castrado é relativamente calmo, contente com as suas funções de dormir, comer e cagar, não nessa ordem, pois dormir normalmente se intercala entre essas funções (dormir, dormir, comer, dormir, cagar, dormir...) Também lembremos que se o gato é de apartamento e só pode transar com as gatinhas que estejam dentro do apartamento. Bom, deixemos de lado todas as suposições, é óbvio que o gato enjaulado não transa, e se não é castrado, tende a se jogar da janela como todo homem com sede de sexo.
Então eu teria todo o tempo de Sol para refletir sobre as cores do mundo da minha janela e do movimento periódico das moscas e do ilógico das mariposas assustadas, sem me preocupar com o resto da população da minha raça, nem com o almoço de hoje (que está num pote sujo, cheio de ração, a mesma ração durante a vida toda, para evitar que meus pelos caiam mais do que já caem), nem com as inconstitucionalidades da minha vida reclusa. Afinal é inconstitucional o cativeiro que eu viveria, obrigado a me sentir a vontade dentro dos metros quadrados (não estou pedindo muito, pode ser um apartamento pequeno) que seriam o meu pequeno e praticamente imutável mundo, enquanto eu me alimentaria sem entender a magia dos diferentes sabores que o planeta Terra tem a me oferecer, nem as outras magias mundiais que não vou especificar por três motivos: primeiro é a preguiça, segundo é que são muitas, terceiro é que o texto já toma proporções inimagináveis e o leitor não se sente a vontade em ler e ler e ler (culpa da internet!)
Pois eu gato não teria preocupações algumas, nem as minhas necessidades consumistas, pois não me seriam necessários nenhum aparato tecnológico (talvez caixas, gatos adoram caixas, presumo que eu poderia gostar de uma também); nem as minhas necessidades amorosas, pois o meu castramento me faria puro de todo e qualquer sentimentalismo; nem das minhas necessidades físicas, já que o meu dono seria responsável pelo fornecimento de comida, água e esgoto (sem nenhum tipo de tributação). Vivendo apenas sob um direito consuetudinário, no qual eu praticamente deveria lembrar onde posso ou não posso pisar. A pena é que o direito consuetudinário se faz à força, com muito tapa e xingamento, mas eu jamais iria imaginar a injustiça desse direito, pois, voltando às inconstitucionalidades, de nada serviria um volume de leis impressas se eu não soubesse ler e reivindicar esses meus direitos.
Só peço que não banqueteiem na minha frente, pois o cheiro da carne iria subir o meu cérebro e ativaria as memórias das minhas experiências ilegais (de acordo com o direito vigente) com a alimentação alternativa à massante e insossa ração. Então me bateriam e me xingariam de novo. Que mundo injusto, a vida sob uma eterna inconstância, ora amor e carinho, ora tapas e pontapés, mas a vida humana não é a mesma inconstância? Amor, carinho, tapas e pontapés? Então eu deitaria e dormiria mais um pouco, sonhando com banquetes e com inverdades inimagináveis sobre o mundo que não conheço.
Então vamos às minhas filosofias felinas. Talvez deitar-me sob o sol quente nesta tarde fria pudesse ser a mais valiosa das oportunidades. E quando meus pelos ficassem quentes demais, ia para a sombra, até que esfriassem e eu pudesse aproveitar o calor solar novamente. E viveria nesse ciclo eterno até que o dia acabasse. Não especifiquei as condições da minha vida gatuna, mas é claro que gostaria de ser um gato de apartamento, castrado e bem nutrido. Pois minha alma canina deve ter se esquecido de especificar a quem quer que nos atenda quando preenchemos as papeladas todas pra sairmos do céu (chamo de céu, mas fica em aberto o local, afinal me é de completo desconhecimento) que queria ser um menino rico e mimado, para crescer em um homem rico e mimado. Rico e esportista. Os cachorros adoram correr, então suponho que minha alma canina gostaria dum corpo humano que pudesse satisfazer essa necessidade intensa de correr atrás de bolas enquanto babo. Não obstante, meu esbelto corpo (e cérebro, não alma, que fique claro) não é fã de nenhum tipo de esporte. Então queria ser um gato de apartamento (talvez essa seja a parte mais importante: de apartamento, devido à longevidade e à segurança, além de todo o contexto de abrir mão de qualquer preocupação), castrado e bem nutrido.
Os homens me perguntariam o motivo de ser castrado, digo os homens, pois as mulheres não se importam tanto com as bolas e com o sexo como se importam os homens. Então respondo aos homens: o gato castrado é relativamente calmo, contente com as suas funções de dormir, comer e cagar, não nessa ordem, pois dormir normalmente se intercala entre essas funções (dormir, dormir, comer, dormir, cagar, dormir...) Também lembremos que se o gato é de apartamento e só pode transar com as gatinhas que estejam dentro do apartamento. Bom, deixemos de lado todas as suposições, é óbvio que o gato enjaulado não transa, e se não é castrado, tende a se jogar da janela como todo homem com sede de sexo.
Então eu teria todo o tempo de Sol para refletir sobre as cores do mundo da minha janela e do movimento periódico das moscas e do ilógico das mariposas assustadas, sem me preocupar com o resto da população da minha raça, nem com o almoço de hoje (que está num pote sujo, cheio de ração, a mesma ração durante a vida toda, para evitar que meus pelos caiam mais do que já caem), nem com as inconstitucionalidades da minha vida reclusa. Afinal é inconstitucional o cativeiro que eu viveria, obrigado a me sentir a vontade dentro dos metros quadrados (não estou pedindo muito, pode ser um apartamento pequeno) que seriam o meu pequeno e praticamente imutável mundo, enquanto eu me alimentaria sem entender a magia dos diferentes sabores que o planeta Terra tem a me oferecer, nem as outras magias mundiais que não vou especificar por três motivos: primeiro é a preguiça, segundo é que são muitas, terceiro é que o texto já toma proporções inimagináveis e o leitor não se sente a vontade em ler e ler e ler (culpa da internet!)
Pois eu gato não teria preocupações algumas, nem as minhas necessidades consumistas, pois não me seriam necessários nenhum aparato tecnológico (talvez caixas, gatos adoram caixas, presumo que eu poderia gostar de uma também); nem as minhas necessidades amorosas, pois o meu castramento me faria puro de todo e qualquer sentimentalismo; nem das minhas necessidades físicas, já que o meu dono seria responsável pelo fornecimento de comida, água e esgoto (sem nenhum tipo de tributação). Vivendo apenas sob um direito consuetudinário, no qual eu praticamente deveria lembrar onde posso ou não posso pisar. A pena é que o direito consuetudinário se faz à força, com muito tapa e xingamento, mas eu jamais iria imaginar a injustiça desse direito, pois, voltando às inconstitucionalidades, de nada serviria um volume de leis impressas se eu não soubesse ler e reivindicar esses meus direitos.
Só peço que não banqueteiem na minha frente, pois o cheiro da carne iria subir o meu cérebro e ativaria as memórias das minhas experiências ilegais (de acordo com o direito vigente) com a alimentação alternativa à massante e insossa ração. Então me bateriam e me xingariam de novo. Que mundo injusto, a vida sob uma eterna inconstância, ora amor e carinho, ora tapas e pontapés, mas a vida humana não é a mesma inconstância? Amor, carinho, tapas e pontapés? Então eu deitaria e dormiria mais um pouco, sonhando com banquetes e com inverdades inimagináveis sobre o mundo que não conheço.
quarta-feira, 10 de abril de 2013
Escada pra lugar nenhum
se fosse pra escrever uma poesia
escreveria sobre a esperança
que é algo que eu não tenho
mas que anda comigo
como um carrapato
grudado fundo na minha pele
corroendo os meus ossos
enquanto eu sigo em frente
ou melhor
sigo parado
enquanto o mundo gira
e a esperança da humanidade se destrói
e se constrói
toda vez
que um novo homem nasce
e outro morre
e a bomba atômica não acaba com a vida
e o pastor não renuncia
e a velhinha na rua dá um sorriso de gratidão porque ela pode atravessar
enquanto você esquenta a bunda quente no assento quente do carro quente
e lá fora faz frio
e tanta gente sente os ossos arderem
e rangirem
como portões de aço enferrujados
com frio
e fome
e tudo o que eu tenho é a esperança
que amanhã
eu acorde
bem
escreveria sobre a esperança
que é algo que eu não tenho
mas que anda comigo
como um carrapato
grudado fundo na minha pele
corroendo os meus ossos
enquanto eu sigo em frente
ou melhor
sigo parado
enquanto o mundo gira
e a esperança da humanidade se destrói
e se constrói
toda vez
que um novo homem nasce
e outro morre
e a bomba atômica não acaba com a vida
e o pastor não renuncia
e a velhinha na rua dá um sorriso de gratidão porque ela pode atravessar
enquanto você esquenta a bunda quente no assento quente do carro quente
e lá fora faz frio
e tanta gente sente os ossos arderem
e rangirem
como portões de aço enferrujados
com frio
e fome
e tudo o que eu tenho é a esperança
que amanhã
eu acorde
bem
segunda-feira, 8 de abril de 2013
TOC
Descobrir que entre as páginas 96 e 103 a colagem do livro perdia seu padrão (de 30 em 30 páginas) me deixava nauseado, como se Deus não tivesse nenhum respeito a mim ou toda a lógica da vida se escondesse em algum tipo de obviedade como acordar e dormir em horários errados em dias errados por motivos errados.
domingo, 7 de abril de 2013
Dos dedos do escritor
Não me faltavam palavras pra dizer o que eu sentia. Só preferia não botar em letras formando um português mais ou menos, devido à crença de que, se mantivesse o silêncio, poderia seguir em frente sem esfolar o rosto no chão em mais uma queda dramática e apática.
sábado, 23 de março de 2013
Vaporização
meu cérebro em ebulição
e as palavras se formando como bolhas
subindo à superfície
pra explodir
e se perder na atmosfera
sem nem saber
o que
pensei.
e as palavras se formando como bolhas
subindo à superfície
pra explodir
e se perder na atmosfera
sem nem saber
o que
pensei.
terça-feira, 12 de março de 2013
terça-feira, 5 de março de 2013
sábado, 2 de março de 2013
Servidão
Ele fumava um charuto fedorento que adensava em fumaça roxa a atmosfera do escritório escuro, sentado como um rei no seu trono de couro. Mamava aquilo fazendo barulhos de criança chupando mamilo de plástico, uma mamadeira de fumo cubano. Um homem grandemente baixo e careca, parecendo um porco bem nutrido. Eu, sem me sentar havia muito tempo, segurava um monte de arquivos e relatórios e apresentava uma dívida. A dívida era dum cliente que ganhou um processo judiciário, no qual ele suga a herança da ex mulher numa série de justificativas complexamente vazias. O cara acabou sendo sequestrado um tempo depois. A mandante do sequestro era a própria ex mulher, mas nunca sequer imaginou-se a possibilidade d'aquela senhora tão boa e nobre enlutada pela perda dos seus bens mais nobres, os da família, machucar um pobre passarinho. Então o cara acaba tendo quase todo o dinheiro roubado sem que nem mesmo o banco percebesse o rombo monetário, sobrando apenas dois imóveis de alto padrão que ele se recusa a vender. Vive acampado numa mansão, sem grana pra pagar a gasolina do condomínio no subúrbio ao trabalho no centro.
- Você já ligou pra esse filho da puta?
- Ninguém consegue falar com ele. Parece que teve os telefones cortados.
- Cortados o caralho. Esse porco tá me fazendo de idiota.
Faço silêncio. Enquanto a grande cinza do charuto se quebra e cai no colo dele. "Caralho..."
- Essa sociedade está toda fodida...
- Com certeza está. Embora eu entenda que ele foi sequestrado.
- Aposto que foi armado. E se não foi, que ele vendesse aquela casa de campo. Que merda! Ah, não tem jeito de jogar uma escravidão por dívida em cima desse idiota? Tinha tanto trabalho prum vagabundo desses.
Dei um passo pra trás, tentando não esboçar nenhuma reação.
- Tá, chama o Cruzes.
O Cruzes era um sujeito imenso, com cara de idiota e óculos de idiota. Era uma mistura de detetive e capanga e assassino ou qualquer coisa que minha criatividade cinematográfica pudesse inventar. Só vestia regata, destoando de toda aquela corja de engravatados do escritório. Entra o Cruzes na sala, dando passos com os pés abertos para fora, numa marcha chapliniana militarizada, a barriga vazando do fim da regata e por cima das calças.
- Você vai descobrir o que esse cara tá fazendo. Converse com ele. Fale que estamos tentando ligar há uma caralhada de tempo. Quero o número novo dele. E o meu dinheiro!
O homem grande dá meia volta e sai da sala na mesma marchinha maquinal.
- Some daqui.
- Senhor?
- Pode ir pra casa.
- Boa noite, senhor.
De repente eu estou andando pelas ruas escuras com a sensação de que estou protegendo merdas enquanto sobrevivo. Paro no bar da esquina de casa, interrompendo meus conflitos éticos, e peço uma tequila e uma cerveja. Por lá fico, pois é mais importante viver.
- Você já ligou pra esse filho da puta?
- Ninguém consegue falar com ele. Parece que teve os telefones cortados.
- Cortados o caralho. Esse porco tá me fazendo de idiota.
Faço silêncio. Enquanto a grande cinza do charuto se quebra e cai no colo dele. "Caralho..."
- Essa sociedade está toda fodida...
- Com certeza está. Embora eu entenda que ele foi sequestrado.
- Aposto que foi armado. E se não foi, que ele vendesse aquela casa de campo. Que merda! Ah, não tem jeito de jogar uma escravidão por dívida em cima desse idiota? Tinha tanto trabalho prum vagabundo desses.
Dei um passo pra trás, tentando não esboçar nenhuma reação.
- Tá, chama o Cruzes.
O Cruzes era um sujeito imenso, com cara de idiota e óculos de idiota. Era uma mistura de detetive e capanga e assassino ou qualquer coisa que minha criatividade cinematográfica pudesse inventar. Só vestia regata, destoando de toda aquela corja de engravatados do escritório. Entra o Cruzes na sala, dando passos com os pés abertos para fora, numa marcha chapliniana militarizada, a barriga vazando do fim da regata e por cima das calças.
- Você vai descobrir o que esse cara tá fazendo. Converse com ele. Fale que estamos tentando ligar há uma caralhada de tempo. Quero o número novo dele. E o meu dinheiro!
O homem grande dá meia volta e sai da sala na mesma marchinha maquinal.
- Some daqui.
- Senhor?
- Pode ir pra casa.
- Boa noite, senhor.
De repente eu estou andando pelas ruas escuras com a sensação de que estou protegendo merdas enquanto sobrevivo. Paro no bar da esquina de casa, interrompendo meus conflitos éticos, e peço uma tequila e uma cerveja. Por lá fico, pois é mais importante viver.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
História de ninar
Sobe a subida, que de repente é ladeira e logo é morro e então colina e se posta lá, sentado no topo, no pico. Cruza as pernas de índio e sente o vento e as nuvens enquanto espera o céu ruir. Espera que lhe busquem, crendo que a sociedade sente sua falta e se arde em prantos de pura e sincera saudade. Espera até que lhe crescem pelos e logo estes pelos estão longos e lhe coçam as faces. E o mundo evolui entre guerras e doenças e morte e fome, globalizando a semente da ideia de que os seres humanos são iguais até que as cores e o que outrora fosse chamado de raça se unissem em uma só expressão, do desconhecimento das outras culturas à uma cultura só. Espera e suas unhas se espiralizam em um tom de casca de madeira e seus cabelos já descem a colina e sua fome já não cabe mais no mundo. Então ele acorda numa manhã qualquer e o céu se abre à uma figura extraordinária, um homem de quilômetros por quilômetros, de barbas brancas como as nuvens e a pele lisa como as nuvens e os olhos puros como as nuvens. Então ele se levanta e todos os seus ossos rangem como portões de aço, vazam suas roupas numa líquida queda, sem tocar qualquer centímetro de sua pele magra. E ele percebe que está muito maior e ele percebe que é uma árvore. Deus o vê, Deus o sente, Deus o ama. Ele se sente amado e quente. Tem saudade do corpo de uma mulher tocando cada poro de seu corpo. Por isso corta as unhas métricas e os cabelo e barba quilométricos e sorri a Deus. Deus lhe sorri de volta. Deus o ama, mas o amor de Deus não lhe é suficiente, então ele desce a colina e o morro e a ladeira e vê um mundo novo, na qual ninguém percebe sua nudez magérrima. Os humanos andam de lá para cá, absorvidos pela própria consciência. Ele sente frio. Senta no chão. Logo lhe dão umas moedas, uns trapos para vestir, uns restos pra comer, um canto pra dormir, uma vida pra viver. Então ele esquece de Deus e vive e sucede e ama e odeia e ganha e perde e finalmente se casa e tem um filho, ao passo que, em certa noite, quando o filho lhe pede uma história, o pai lhe conta essa.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
Alma depenada
um tiro no pé ou
uma corda frouxa
no pescoço nu
penas
eu vejo penas
penas e luz
que são minhas
minhas penas
no meu chão
meu galinheiro
minha gaiola
minhas penas
a luz do sol
nas minhas asas
depenadas
já passa das oito
já passa da hora
de despertar
uma corda frouxa
no pescoço nu
penas
eu vejo penas
penas e luz
que são minhas
minhas penas
no meu chão
meu galinheiro
minha gaiola
minhas penas
a luz do sol
nas minhas asas
depenadas
já passa das oito
já passa da hora
de despertar
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
Esperança
Quando me olho no espelho, não consigo mais manter o sorriso. O rosto disforme, como se a gravidade fizesse seu papel dobrado, triplicado, quadruplicado; sob os olhos de pálpebra caídas, olheiras roxas, dentro deles, a impressão da desilusão e o desespero de fracassar novamente. Consegui acreditar em princípios básicos de sobrevivência, procurando não desmoronar, mas na frente do espelho nada disso faz sentido. Meus princípios fundamentais sendo eclipsados pelos simples e inúteis princípios de sobrevivência, os quais não têm sido capazes de me manter vivo. A cega crença de que a paciência, e sobretudo ela, pudesse me levar aos meus novos e maiores sonhos caiu por terra. A paciência não me foi suficiente. Esperar todos os dias para um novo amanhã, como quem espera o retorno do Salvador ao mundo mortal, para assim seguir em frente e, mais do que qualquer outro desejo, conhecer.
Se eu pudesse simplesmente lutar. Ciente que a paciência não é minha única aliada. Lutar ao invés de esperar. Mas os músculos do meu rosto estão tão cansados. Ah, quanto tédio! Quanto tempo perdido! O que estive fazendo esse tempo todo? Não sei mais me apegar a deuses ou a santos, muito menos ao sentimento de Esperança. Já me enganaram muito com promessas de vitória. E eu só perdi. Só preciso me levantar de novo. Que cansaço. Que fracasso. Estou bem... Paciência...
Se eu pudesse simplesmente lutar. Ciente que a paciência não é minha única aliada. Lutar ao invés de esperar. Mas os músculos do meu rosto estão tão cansados. Ah, quanto tédio! Quanto tempo perdido! O que estive fazendo esse tempo todo? Não sei mais me apegar a deuses ou a santos, muito menos ao sentimento de Esperança. Já me enganaram muito com promessas de vitória. E eu só perdi. Só preciso me levantar de novo. Que cansaço. Que fracasso. Estou bem... Paciência...
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
Ninfas
De repente tomava posse de matéria e vida a garota do sonho que tive naquela noite. Há exatos 128,9º da minha cadeira, em sentido anti horário com centro no tripé de um prato de 12" da bateria, sentava o que podemos atribuir o nome de ninfa, em ritmo caolho de Camões de belezas surreais e divinas. No sonho, a ruiva saia da água, como se usando uma escada de degraus subaquáticos que a trazia cada vez mais perto de mim, do nível d'água aos dos meus olhos. E seus olhos fechados. E seus lábios carnudos se babando em água chegando cada vez mais próximos dos meus. No show, ela sentava ao lado da mãe, seu cabelo de fogo tinha volume e sua pele bronzeada num tom novo de laranja, de sardinhas pintadas de marrom. E toda essa harmonia casada com uma blusa azul clara. Seguindo a regra das duas cores pertencentes aos ruivos: verde e azul. E nesse quadro de beleza clássica, os olhos mais claros que o azul da blusa pulam em valsa para os integrantes da banda a tocar, como uma groupie apaixonada.
E a groupie realmente ama os caras. Ela canta e remexe na cadeira e dá largos sorriso ao vocalista. Nem vê que eu existo. Quis pendurar uma guitarra no pescoço, daí a ninfa me via, mas meu medo era se ela pedisse pra eu tocar. Sem guitarra, sem ninfa. Então a loira de braço enfaixado há 197,3º da minha cadeira me sorri mais de uma, duas, três, quinhentas vezes. Só que essa não é ninfa, só ninfeta, com seus lábios vermelhos de 17 anos e um olhar persistente.
Pois as ninfas perdem sua magia quando não tentam ser mágicas, ao contrário das ninfetas, que são sempre lindas e sorridentes. Me vê tão bem, sem tirar os olhos dos meus, sorri. Eu sei que o sorriso é pra mim. Eu sorrio de volta. Ela fica vermelha, da cor do batom. Eu também, mas sou moreno e não dá pra perceber. Estou quente e quero ela quente. Quem? Ninfa dos meus sonhos? Na próxima noite. Agora eu não posso.
Espero ela e as amigas na porta do teatro. Passa tempo. Elas aparecem. Todas rindo. Olá, meninas. Quais são os planos de hoje? Era beber. Esses jovens de hoje em dia, afogados em vodka e whisky e cerveja. Beber it is. Dou meu telefone e um sorriso largo. Ninguém me ligou, mas dormi uma noite boa.
sexta-feira, 25 de janeiro de 2013
A Luta
Sempre sonho com ela. Me sinto o maior dos idiotas, quando a ereção pós despertar se acaba. Vou almoçar infeliz. O almoço é sempre infeliz. Fico fingindo que não senti nada, nem sequer uma ereção.
Dessa última vez, estávamos no meu antigo colégio, eu, ela, mais uns amigos. Nós todos discutíamos o significado da palavra kampf, que eu dizia que deveria ser alemão, ela, francês. Mas não tem nada a ver com francês. Ela tira o iPhone branco de capa colorida e começa a procurar num aplicativo qualquer o que a palavra significava. Não era francês. Era óbvio que não era francês. Mas ela teimava. Nos meus sonhos, as ereções sempre vem de cenas óbvias de relação sexual, e por relação sexual digo uma foda épica ou um simples beijo na boca. Nesse sonho ela vestia um short e nossas pernas meio entrelaçadas enquanto apoiávamos nossos cotovelos numa espécie de palco alto, que nos batia na altura do peito. Minha perna direita entre as duas dela. As pernas dela com pelos ralos, das coxas ao tornozelos. Minhas pernas, também, mas com eles um pouco mais compridos e grossos. Eu não gosto de pelos. Então podemos classificar a perna dela como peluda. Mas isso é coisa de definição estética, de que as mulheres precisam de pernas lisas e axilas lisas e buços lisos. Penso que devem ter tudo liso. Nossas pernas entrelaçadas e ela procurando a porra da kampf naquele aplicativo que de repente se torna mágico. Ela se desata a escrever e tudo que ela escreve segue em uma linha única e infinita, enquanto a tela muda de cor e imagens de sóis e luas e cavalos trotantes e praias e flores se envolvem e desenvolvem num ritmo tão rápido quanto a digitação dela. O sonho se tornou aquela longa linha. O que era a tela do iPhone se tornou toda a minha visão e as imagens pulsando nos meus olhos enquanto as palavras se formavam tão rapidamente quanto a minha respiração ofegante.
Acordei frustrado, pois a ereção vinha do toque das nossas pernas de pelos curtos, a dela peluda, a minha depilada. No almoço, infeliz. Na internet, kampf era alemão, luta.
Devia ter fingido que não senti nada.
Dessa última vez, estávamos no meu antigo colégio, eu, ela, mais uns amigos. Nós todos discutíamos o significado da palavra kampf, que eu dizia que deveria ser alemão, ela, francês. Mas não tem nada a ver com francês. Ela tira o iPhone branco de capa colorida e começa a procurar num aplicativo qualquer o que a palavra significava. Não era francês. Era óbvio que não era francês. Mas ela teimava. Nos meus sonhos, as ereções sempre vem de cenas óbvias de relação sexual, e por relação sexual digo uma foda épica ou um simples beijo na boca. Nesse sonho ela vestia um short e nossas pernas meio entrelaçadas enquanto apoiávamos nossos cotovelos numa espécie de palco alto, que nos batia na altura do peito. Minha perna direita entre as duas dela. As pernas dela com pelos ralos, das coxas ao tornozelos. Minhas pernas, também, mas com eles um pouco mais compridos e grossos. Eu não gosto de pelos. Então podemos classificar a perna dela como peluda. Mas isso é coisa de definição estética, de que as mulheres precisam de pernas lisas e axilas lisas e buços lisos. Penso que devem ter tudo liso. Nossas pernas entrelaçadas e ela procurando a porra da kampf naquele aplicativo que de repente se torna mágico. Ela se desata a escrever e tudo que ela escreve segue em uma linha única e infinita, enquanto a tela muda de cor e imagens de sóis e luas e cavalos trotantes e praias e flores se envolvem e desenvolvem num ritmo tão rápido quanto a digitação dela. O sonho se tornou aquela longa linha. O que era a tela do iPhone se tornou toda a minha visão e as imagens pulsando nos meus olhos enquanto as palavras se formavam tão rapidamente quanto a minha respiração ofegante.
Acordei frustrado, pois a ereção vinha do toque das nossas pernas de pelos curtos, a dela peluda, a minha depilada. No almoço, infeliz. Na internet, kampf era alemão, luta.
Devia ter fingido que não senti nada.
quinta-feira, 24 de janeiro de 2013
domingo, 20 de janeiro de 2013
O poeta agnóstico e seu temor pelo Criador do Universo
e se eu pudesse escreveria todos os meus poemas
que tenho pra escrever pra você
e o mundo inteiro saberia
que amo todos os centímetros da tua epiderme
que teu cheiro me exalta
e tua boca me excita
mas não posso
este poeta se fecha para o mundo
não com o medo do amor
como outrora
pois o poeta que é poeta está sempre enamorado
seja por todas as pernas que aparecem sob vestidos e shorts curtos
ou os decotes que mostram o coração e a alma
ou o movimento chicoteante dos cabelos das que andam contra o vento
ou o simples voo de um pássaro
o mio de um gato
a beleza duma flor
o poeta ama o mundo em toda a sua desgraça
pois Deus lhe fez assim
inocente de amor
e cretino o suficiente para amar tudo o que puder
o amor do mundo
me fecho com medo do Criador
que levanto bandeiras de não sua inexistência
mas da minha independência Dele
e se existe ou não
não faz parte do meu discurso
pois o poeta teme que Deus não se sinta confortável
com que Ele não seja necessitado
então o poeta não escreve mais
já que não quer que Deus ouça seus suspiros
suas dores
seus amores
e todas as divagações
boas ou más
que se passam dentro desse cérebro
se soubesse quanto te amo
e se eu pudesse largar todo esse amor
pelos meus dedos
e imprimí-los nesta tela
esvaziando meu coração desses planos que dificilmente se tornarão realidade
você fugiria de mim
e eu ficaria sozinho de novo
só com Deus
rindo de mim
e da minha solidão
Assinar:
Postagens (Atom)