me enxaguei
e me ensaboei de novo
ao pegar o shampoo
percebo que eu já havia
terminado o meu banho
devolvo o frasco para o
lugar dele
a água é quente
muito quente
e lá fora
o ar é úmido
e a água congelada
entra nos fios dos cabelos
e da minha
barba
muito quente
olho para baixo
e o ralo se parece
comigo
ou a água sou eu
e eu derreto
transparente
e limpo
muito quente
como eu consigo me sentir tão bem aqui?
sozinho num retângulo de noventa por um e
dez
o tempo para
nada importa
o mundo não
tem mais sons
o mundo nem
existe
mais
só o som da água no meu corpo
e nas paredes
e na janela
e no piso
e o chuveiro
me cantando
em um contínuo
som gutural
muito quente - eu importo - e a água queima minha pele feliz
meu corpo feliz
minha vida feliz
tenho medo do banho
de entrar e não sair mais
nunca mais
despejando toda a represa do Córrego Grande
nas minhas costas
sem perceber
que gastei
toda a água
do mundo
muito quente
só calor
e o som
dali
de dentro
girei a torneira para a direita
pouco o suficiente
pra ficar mais quente
e eu conto até dez
e eu conto até dez
e eu conto até dez
e eu esqueço que estava contando
e estou no 241
giro mais
e fica mais quente
não consigo
mais
respirar
o vapor
que sai
de mim
desligo o chuveiro
e o mundo lá fora
volta a fazer barulho
enquanto o ralo
chora
e o chuveiro chora
o ar gruda
em mim
como o próximo
e gelado
segundo