domingo, 8 de setembro de 2019

Banco de horas

Veja só já era domingo. A luz azul do seriado pausado já mais forte que a luz violeta do céu. A luz azul pintando o rosto dela de baixo pra cima e o violeta no cenário inteiro. A semana foi pesada. E já começou outra. A luz e o calor dos nossos nós entrelaçados, agarrados como um fone de ouvido que sai do bolso no final do dia. Uma hora tudo começou a dar certo e era sábado. E ali era domingo e a composição daquilo tudo eternizava aquele segundo. Só um segundo, porque quando não fazemos nada, o tempo para e aquilo dura pra sempre. E assim vamos engordando nosso banco de horas, com todos esses momentos de nada. Um banco de horas do tempo que parou. O nada dura pra sempre e naquele segundo me sinto pleno.
Quantas vezes não senti essa plenitude? A vida é feita disso, de segundos plenos, que se alongam por minutos e às vezes horas. E a gente esquece desse sentimento complexo porque a vida corre e por Deus, esse inferno é frio. O nada se estende sorridente entre os nossos olhos. O violeta vai se apagando e ela está cada vez mais iluminada. Eu tenho medo que esse segundo acabe, aperto ela mais forte. Essa hora era hora de estar na casa da vó. Fez um dia lindo hoje. Teve churrasco e agora a família assiste o Faustão na sala, as mulheres esperam a Dança dos Famosos, as crianças, as que não estão mais no quintal porque está esfriando, esperam as Videocassetadas. Não há homens ali. A gente nunca sabe onde eles estão. Normalmente dormindo. Normalmente bêbados. Mas nem sempre. Às vezes estão fumando e conversando perto da churrasqueira apagando. Às vezes ainda na cervejinha. A vó tá fazendo bolinho de chuva e o cheiro de fritura chega quente da cozinha.

Obrigado por ser essa pessoa maravilhosa. - Ela diz.

Meu coração explode.
Eu volto feliz e quente.
Aperto mais forte e dou uma chuva de beijos.

O segundo acaba.
Ainda bem, era domingo.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Quase nada

não sei se eram palavras que eu queria colocar aqui
nem fatos nem histórias nem realidade alguma
só um pouco de cor e forma e textura

cinza como fumaça
volátil como fumaça
fumaça como fumaça

aquilo que cresce
e some transparente

hoje é quarta feira
de um dia azul

mas eu queria escrever aqui
um cinza bem claro
quase branco

volátil
que cresce
e some

toda poesia ficou presa entre nós dois
e aqui não sobrou palavra

só cinza
volátil
quase branco

segunda-feira, 29 de abril de 2019

O precipício do terceiro andar

tempo
de novo
girando
e dando voltas
no mesmo
derreter
sempre
passo a passo
mesmas palavras
vício contínuo
interminável
eternidade
em ciclo
a mesma coisa
tudo de novo

caio como moeda
e quico
e giro
e perco valor
valendo sempre
a mesma migalha

imperador disso aqui
o trocado no bolso da carteira
que existe só pra ajudar
quem vive nas ruas
quem se droga nas calçadas
quem tem troco ruim
ajudar e nada mais

e numa torre de migalhas
a gente salva o mundo
transformando um passado cruel
em futuro utópico

distopia grave
o meu Brasil implodindo
minha terra tem terra
e terra custa e terra vale
e de migalhas em migalhas
quico em moedas duras
que me marcam o corpo magro

migalhas e um futuro vazio
meu estômago cheio de histórias obscuras
e arroto bem grave os absurdos de existir

caindo espero o tempo acabar
o infinito mede as profundidades dos meus vazios
de escada e trena caio e treino
treino pra cair de novo

gravidade
mais forte
sempre casada
com minhas pálpebras
cansadas

escrevo em rascunho
o meu papel aqui dentro
e o rascunho virou lixo
junto com o meu contrato
vitalício

vivo e respiro
trocas gasosas
a todo vapor
e a pele quente
borbulhando gotas de amor

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Senhor Serafim

Abro as portas com as duas mãos e recebo com alívio o ar frio do ar condicionado. Levanto os óculos escuros dos olhos para a cabeça, segurando o meu cabelo como uma tiara. Vale a pena apresentar a minha imagem para informação posterior: tênis cinza e vermelho sujos, meias soquetes, bermuda branca, camiseta marrom com uma mandala estampada, barba até o fim do pescoço com bigodes fazendo volta para cima, cabelos até os ombros e óculos escuros de aro dourado e lente espelhada violeta.
Duas mulheres loiras terminavam de serem atendidas. A recepcionista me cumprimenta. Respondo onde moro e os pepinos que temos que resolver. Eu uso a palavra pepino. Ela me chama pelo nome do inquilino, o meu tio Serafim. Então, naquele instante, me tornei o Senhor Serafim. Ela falava muito e eu perdi a oportunidade de dizer "Meu nome é Thomas, Serafim é o meu tio", então virei senhor. Por um momento me perguntei se todos os clientes homens eram chamados de senhor, e se eles tinham o hábito de enfrentar diariamente a desagradável confusão entre senhora e senhorita. Ou talvez ela sabia que eu era um senhor nascido no oitavo dia do mês de agosto de 1948. Era pouco provável. Mas podia ser, quem sabe? Ela me trata como um garoto, mas um garoto bem pequeno. E ela é bem educada. Será que vai me perguntar se quero um pirulito? Será que todos os clientes são tratados como bebês? Pelo que vi com as mulheres loiras, sim.
Ela me pede pra que converse com o Israel, no andar superior. Anota coisas numa folha branca cheia de anotações. Números e palavras abreviadas e círculos e divisões que separavam aquele rascunho todo rasurado em caneta azul. "Gostei dessa tua organização". Disse sinceramente, e imediatamente arrependido por parecer crítico. "Ah, eu preciso anotar as coisas rápido pra passar pro computador, então rabisco aqui antes". Elogiei, pra deixar claro que sim, eu aprovo essa bagunça, eu compreendo porque é assim que raciocínio também.
Eu subo as escadas e encontro Israel. Exatamente o tipo de pessoa que você espera encontrar em uma imobiliária: um cara forte, barba curta e meticulosamente desenhada, cabelo curto com um sutil topete em gel (se o cara for menos vaidoso do que eu espero que ele seja) e olhos claros. Ele também me trata como uma criança. Também me chama de Serafim. Parece que é política da empresa. Mas dessa vez, faço questão de dizer "Meu nome é Thomas, Serafim é o meu tio". E conto dos meus problemas. Para cada problema, lhe digo "Não sei se eu posso arrumar, chamar alguém, ou é com vocês." e ele respondia ou "Como eu posso explicar pra você?", quando era minha responsabilidade, ou "Ok, vou falar com o proprietário pra ver se ele autoriza a reforma", como se o proprietário fosse o pai de todos. E quando era minha responsabilidade, eu não deixava ele responder a própria pergunta retórica e já respondia "Tá, eu posso fazer" e ele respondia que sim. Foi simpático, embora não tenha me oferecido um pirulito. No entanto, se despediu assim "Boa tarde, senhor Serafim, gostaria de ajuda pra descer?" Agradeci e desci, um pouco confuso com a pergunta. Aqui é importante notar que a escada não tinha mais que 40 cm de largura, uma escada justíssima, norma aqui é lenda, pois enfim, não cabiam dois seres humanos e logo me perguntei como funcionam as gentilezas aqui.
Ao descer reencontro Andrea, a recepcionista simpática, negra e de sorriso largo. Só percebi que se chamava Andrea quando li seu pingente no pescoço. Acho engraçado quando as pessoas usam seus nomes em pingentes, como coleiras de cães ou crachás de funcionários. Nesse caso, em se tratando do segundo, funcionou muito bem. "Agora vamos para a contabilidade, senhor Serafim. É ali no prédio ao lado. Deixa eu abrir a porta pra você." E o calor ressurge como uma memória há muito esquecida e que assusta quando volta a mente. "Esse calor está horrível, né?", ela me pergunta. "Viver fora do ar condicionado tá impossível. E as pessoas dizem que viver no litoral é bom pra pressão, mas eu fico derretendo e minha pressão lá no pé." Ela ri. Abre a porta pra mim. "Você consegue subir escadas, senhor Serafim? Ah, é verdade, você subiu as escadas de lá. Então é só subir e a Catarina está esperando por você." Ela virou as costas e nesse momento eu tive a plena certeza de que ela me via um senhor. E se todos eles soubessem que eu era um idoso? Eu seria um idoso extremamente vaidoso com esse óculos escuro e cabelos e barba pintados. Ou será que eu só estava magro demais? Ao invés de prestar atenção no óculos e no cabelo e na barba, prestou atenção nos meus ossos dos joelhos e braços? Talvez se preocupou mais com essas olheiras fundas e essas bochechas magras e ossudas. Talvez. Talvez nada disso. Pois qual personagem é melhor, senão aqueles que são recortes de pessoas reais? E onde há melhor história senão nas que existem tons de verdade disfarçadas em ficção? Talvez eu estivesse pensando demais, pronto pra próxima vez que ficasse sem luz e eu pudesse escrever alguma coisa. Pois foi um bom plano. A luz não volta, bebo um corote que desce rasgando, a história segue sem sentido ou valor. E estava decidido, eu seria Serafim e seria eu também.
Catarina e seu parceiro de escritório me receberam com amabilidade. Catarina claramente estava nervosa, mas era simpática. Até eu lhe contar o meu problema. "Catarina, perdoe esse velho, mas eu simplesmente tinha esquecido que isso era uma obrigação". Ela olhou pros dois anos de contas que eu não tinha recebido rateio algum com algo entre raiva e desespero. "Senhor Serafim. Eu nem sei o que fazer. O que falar. É muita coisa. Eu tenho muito trabalho. Eu ia fechar o mês hoje, mas vou precisar fechar amanhã. Por um acaso o senhor está se mudando?" E eu respondo que não, que sou viúvo e moro com meu filho mais novo, mas ele vai casar e se mudar com a esposa, e que gosto muito do apartamento e embora minha filha quisesse que eu me mudasse, digo que fico. "Ah, senhor Serafim. Você precisa ficar atento e mandar isso pra mim. Você sabe usar o whats? É só mandar pra mim uma foto. É só uma vez por mês". Eu começo a rir internamente, mas ao invés disso, peço perdão, digo que receber esse dinheiro não é minha maior preocupação, que só tinha percebido o meu erro e que vim informar o erro. "Desculpe por te dar tanto trabalho, Catarina". Ela se acalma e sorri. Aproveito a deixa e dou tchau.
O ônibus fazia a curva quando eu sai da loja, levantei o braço e dei passos rápidos pra chegar com ele no ponto. Olhei o assento preferencial e sorri. Sentei no detrás e derreti até o meu ponto.