domingo, 9 de outubro de 2022

Pula a fogueira

francamente fraco começa assim pelo rebosteio de uma perspectiva 
singular e desanimadora parece pular em todo buraco pra chamar de
seu minha casa meu lar meu profundo eu já faz muito que as palavras 
saíam e diziam o que eu tinha a dizer mas agora ficam engasgadas 
entaladas engastadas gasto tudo trotejante pra me libertar de 
qualquer ideia que não seja minha saudável coerente 
inconclusivamente fraco de folias e fissuras fascínora desiste de si 
todas as vezes que o sol deixou de sorrir como se sol tivesse boca e 
toda boca fosse imã do meu próprio sorriso lábios flamejantes e 
borboletas no estômago e excitação de primeiras vezes como se a 
virgindade fosse sempre o caminho pra uma próxima e intensa aventura

francamente fraco desiludido porque a lâmpada queimou e a lua lá 
fora faz sombras geladas como réptil sonho com fogo e me enrolo 
no meu pequeno ego pequeno como palíndromos de três letras 
ama e ama e ama como disco riscado e ama e ama e ama e 
pouco há de sentimento exclusivo que exprima com eficiência essa 
violenta e inabrupta situação odienta de rasgos impotentes querelas 
sem justiça fortalezas rachadas pratos quebrados copos em vão livre 
pulando precipícios fundamentados em prazeres passados e sonhos 
apagados porque a lâmpada... ela queimou...

francamente. fraco. ensimesmado de fatores conscientes que me 
transbordam e transformam em juíz de todos nós principalmente 
meu como se justiça e sentença fizessem parte da mesma 
programação irrisório e ilibado irrisível e libidinoso irracional e 
literalmente fraco. francamente fraco. tempo e espaço caminhando 
a minha frente sem esperar nem olhar pra trás e eu aqui como criança 
abandonada poros molhados fé estarrecida juízo inconformado 
incontente com patifarias e meu busto na praça pública cada vez mais 
longe de ser real modelo de merda pode ser pelo menos serviu de 
alguma coisa pode ser

fracamente franco no silêncio rotundo porque elas não voltam pra 
mim se foram como décadas de domingos esquecidos e segundas 
assustadas e terças impossíveis e quartas insuportáveis e quintas de
esperança e sextas de decepção e sábados de desespero ou vai me 
dizer que os dias que passaram já foram mais bonitos com astros e 
deuses e fés incompreendidas por ignorâncias mais baratas que tudo
que viria a porvir

ouve o que eu tenho a dizer que são palavras de pura sabedoria 
porque meu saber é pleno e plano como pastos secos e rachados de 
solidão superestimada e isso tudo me faz tão poderoso quanto uma 
caixa de fósforos quase vazia me ouve e escuta eu queimar

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

A intergalática bola de espelhos

especialista em bloco de notas
*Sem título
o asterísco lembrando que faltou salvar

doutor em não expôr
clica no X e não esquece
"Deseja salvar as alterações em "Sem título"?"
seguido de "Não Salvar"

ninguém merece ser salvo
no final das contas
pelo menos não essas ideias
que eu guardo e rumino e engulo

nesse vai-e-vem frenético de não dizeres
de pensares e engolires e estripudiações 
esquecidas no estreito da minha garganta
que esquiva a minha voz

especialista em não ser normal
mas de forma alguma especial

sempre na borda do dito e do não dito
do ser e do não ser
do propósito e do acaso
tão especial quanto um floco de neve

único em 7 bilhões de unicidades
espiritual e metafisicamente evoluído
como um monge que esqueceu de meditar
um faminto obeso e um raquítico glutão

fazendo arminha com a mão e
atirando em arminhas feitas de mão
pra desarmar a população armada
de más ideias

sempre protegendo as minhas
como se um dia tivessem sido
sagradas

sagradas como um deus que foi dar uma volta
e se perdeu numa ilusão que ele mesmo criou
tesouro valioso para civilizações passadas e futuras
e sucata para todos esses humanos que reciclam latas

especialista em rascunhos
planejador de sonhos
arquiteto de ilusões
construtor de vazios
o famoso... esqueci
como se chama mesmo?

quinta-feira, 28 de julho de 2022

O equilibrista que dependia da rede

você tinha esse jeito absurdo de viver
e com sorriso no rosto abria o peito com prazer
eu nunca soube ser intenso assim
vivendo de migalhas e experiências aos pedaços

parecia que a cidade ovacionava os teus passos
e você sambava um pé atrás do outro pra algum lugar chegar
enquanto eu me cobria num dia quente de inverno
esperando todo humano dormir pra me sentir bem aqui

um dia alguma coisa deu errado por aí
e todo esse sol que você trazia se apagou
e alguma coisa deu certo aqui
e essa escuridão foi embora com o "tec" de um interruptor

nunca houve harmonia em nossas vidas
que nos alinharíamos como planetas
e nossas vidas naquele instante mudariam
a história desse mundo desarmônico

mas cada um foi pra um lado
como cometas que daqui 241 anos
poderiam de novo se encontrar

só mentirosos vivem de promessas
e a vida segue

penso que nosso amor foi vão
um de nós sofrendo à toa
buscando esperança numa
caixa de sapatos vazia
que dia após dia
abríamos de novo
pra saber se havia alguma
novidade ali

há surpresas que a gente nunca quer descobrir
e descobertas que nunca nos surpreendem

conosco foi assim
um lado feliz e outro triste
o tipo mais vil de traição

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Começou sem querer, mas uma hora tinha que acabar

Começou com um peixe, que se dispôs a enfrentar marés turbulentas a fim de chegar logo ali.
Começou com uma estrofe sem sentido que se voltava nela toda vez que o cérebro perdia atenção.
Começou com um lugar que era o mesmo lugar de sempre com as mesmas bordas arredondadas.
Começou com uma explosão que primeiro implodiu tão forte que não havia mais nada.
Começou num parágrafo que contava uma história que era escura como um breu.

Mas nunca terminou.

Começou de novo.
Porque a gente é novo e bate a cara no chão e os sonhos se estilhaçam como fogos de artifícios que contam pra todo mundo - com toda a alegria e cores que os fogos tem - que há um fracassado caído ali.
E depois do fracasso parece que é tudo mais fácil.
Não tem sonho, nem regra, só um tempo vazio.
E a gente vai enchendo esse vazio com coisas que a gente acha que vale a pena encher.
E uma hora explode.
E a gente começa de novo.
Porque a gente não é mais novo. E parece que a gente pode escolher um pulo cada vez menor pra chamar de sucesso. E os pulinhos nunca derrubam e os fogos de artifício não dizem mais que há um fracassado ali. Mesmo que haja.

Começa com um sorriso e acaba com uma lágrima. Começa com uma dança e acaba com um surto. Começa com amor e acaba com ódio. Começa com orgasmo e acaba com repulsa. Começa com orgulho e acaba vazio. O fracasso é inevitável.

Começou com um par de olhos que sorriam para os meus.
Começou com umas sete voltas embriagadas em uma rotatória.
Começou com eles namorando e eu aqui balançando as perninhas no balanço muito alto do parquinho.
Começou com traição antes de fidelidade. Começou com promessas.
Começou com uma tristeza que era pequena como a cabeça de um alfinete e ela sugava tudo a sua volta como um buraco negro. Um pontinho no espaço capaz de abarcar toda a existência do universo.
Começou com um volto logo.

Nunca terminou.
As coisas acabam.
Mas nunca terminam.
Sempre começa de novo.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

O hábito de perder hábitos na vastidão do habitat

queria vir aqui e escrevi "im"
que me disse que eu esqueci das palavras e das letras
e que um abraço intenso foi jogado ao vento
inflado de ar vazio e gelado como as palavras que esqueci

aparentemente não tenho nada a dizer
só seguir um trajeto e um plano e um passo atrás do outro
nada a dizer agora
só balbuciando meu nome pra nunca me esquecer
que eu sou eu

vim escrever e esqueci onde ficavam as letras
e meus dedos dançantes escolhiam passos errados
como um bêbado na pista de dança
que tromba com os outros sem saber se são seres vivos ou objetos inanimados

me deixa quieto
que eu não tenho nada a dizer
só um sorriso que 
na umidade dissolve 
como sal num dia chuvoso

segunda-feira, 21 de março de 2022

Raios e trovões

 Era uma vez uma guerra. Uma guerra como tantas outras, então aqui não vou entrar em detalhes. Era só mais uma guerra, onde de um lado havia um herói e do outro um vilão, embora a verdade fosse muito mais profunda que um maniqueísmo barato. E de nenhuma forma estou dizendo que o herói é vilão e o vilão é herói, por favor. Só estou dizendo que era só mais uma guerra. Como tantas outras. Aquelas que inocentes morrem e inocentes matam, como uma prova real de uma equação: de um lado dá zero, do outro também.

Pois havia um bruxo. Vamos chamar de bruxo. Ou de mago, se preferir. Tanto faz, chame do que quiser. Harry Potter, se assim preferir. Mas que fique claro: o bruxo não era nem um pouco parecido com o da J. K. Rowling. Vai ser difícil explicar, mas era um homem muito baixo, talvez menor que um metro e trinta. E talvez não fosse homem de forma alguma. Tinha um bico comprido parecendo a máscara de um médico da peste bubônica, mas isso não era máscara coisa nenhuma. Sua pele era cheia de penugem preta e ele era magro magro magro e vestia um sobretudo algo entre preto e roxo que lhe parecia enorme, mas que na verdade era pouco maior que uma camiseta masculina tamanho M. No seu rosto, a penugem tomava um tom bem claro de lilás, da mesma cor do bico muito comprido, como um tucano.

E esse bruxo enxergava a guerra da janela de casa. Uma torre que era mais alta que as nuvens com uma janela que lhe mostrava o mundo todo. E ele assistia a guerra entristecido, se sentindo impotente como se nunca tivesse visto guerra antes. E ele viu muitas. E pôs seu bico em algumas delas e matou gente e reviveu gente e criou o caos na Terra pra trazer a paz no mundo. Mas dessa vez, ele achou que as coisas se resolveriam sozinhas. E elas não se resolveram.

Na janela, uma criança tenta dormir com o som de bombardeios próximos, a luz entra no quarto da criança como raios e o som como trovões, e o mesmo movimento de luz e som acaba na casa do bruxo: bombas e luz e barulho. A criança chora e sua mãe lhe faz um carinho. A criança quase dorme e uma bomba treme o país. A criança chora e a mãe lhe faz um carinho. A criança quase dorme e uma bomba treme o país. A criança chora e o bruxo se decide: eu vou intervir. Procura na estante da sala um livro bem grosso e nas folhas bem grossas procura algo específico.

E canta. Como um pássaro. Ou um monge. Ou um mago. E o feitiço chega à menina assustada e ela dorme. E sua mãe se aconchega em um abraço e em dois segundos sonha com um campo florido e sua filha correndo com um cachorrinho.

O bombardeio não cessa. Pelo contrário. Chega mais perto do prédio em que mãe e filha dormem. As paredes tremem e soltam poeira como se fossem se desfazer como castelo de areia ao vento forte. O bruxo se desespera. Entende que fez a escolha errada quando o pai entra no quarto pra chamar as duas pra fugir pro bunker. Mas as duas sonham o mesmo sonho e por dois minutos em semanas entendem o que é paz.

O bruxo fecha suas cortinas. Não quer mais ver. Troca de canal. E ao abri-las de novo, soldados regarregam mísseis que são lançados um atrás do outro. Então o bruxo olha pro livro de novo e canta a mesma magia. E assim que os soldados dormiram, ele fechou as cortinas.

E as abriu de novo. E cantou mais uma vez. E fechou e abriu e cantou até que sua voz falhasse e uma nação inteira, junto com seus invasores, sonhavam a mesma coisa: um campo florido e um pouquinho de paz. Fora dali, ninguém entendeu a trégua. E os noticiários do mundo diziam: a guerra acabou? As tratativas estão surtindo efeito? O que significa essa trégua para a economia do mundo?

Cansado, o bruxo foi dormir. No dia seguinte, a terra tremida levava inocentes consigo, prédios desabaram e crianças se tornaram órfãs. Era só mais uma guerra. Triste, como todas as outras.