quarta-feira, 21 de abril de 2010

Outro emprego

Eu tinha conseguido arranjar um emprego miserável. Trabalhava só no turno da tarde, mas ganhava menos do que o porteiro do prédio do lado de casa. Não que eu esteja desmerecendo os porteiros, só acho que eles fazem muito menos coisa do que eu fazia. Porteiros precisam fingir que não estão dormindo, precisam atender o interfone, avisar o morador que alguém chegou, daí apertar o botão de abrir o portão. Talvez, na pior das hipóteses, ele tenha que anotar alguma coisa, assinar alguma coisa, mas não passa disso.
Eu operava uma máquina de fazer fundação de obras. Era algo parecido com um guindaste, que segurava um bloco pesado de algum material que eu não conheço, esse bloco subia e descia com o motor que ficava do outro lado da máquina, batendo no topo da viga da fundação da obra. Um trabalho fácil e monótono, o que me dava tempo prá fumar e beber enquanto mexia com o trambolho amarelo. Prós e contras, tudo tem seus prós e contras. Quando chovia muito, iamos embora, pois era impossível fazer um buraco na lama. Quando chovia pouco, tinhamos que nadar naquela terra nojenta, com o vômito da cidade que cai do céu, enquanto tentávamos fazer aquela máquina velha funcionar. Era bom, pois eu não precisava acordar cedo, podia ir aos bares todos os dias e me embebedar infinitamente. Era ruim, pois o barulho da máquina estuprando o chão era ensurdecedor, chacoalhava a minha cabeça ressaqueada. Dia sim, dia não, eu procurava um emprego melhor, mas nenhum deles pagava mais do que a mixaria que eu recebia pelas quatro vagabundas horas de trabalho.
Um dia choveu pouco. A chuva ácida empoçando a terra cuspida pela máquina. Eu, bêbado e num humor deplorável, resolvi ir embora. Os caras que me ajudavam com o maquinário (eramos 4, revesávamos na parte complicada, que era fazer girar o motor manualmente) tentaram me impedir, mas logo os filhos das putas estavam atrás de mim, perguntando o que fariamos. É um estereótipo estúpido, todos eles com a mesma cara que a minha. Carecas com cara de retardado, nariz grande, voz grossa, babávamos enquanto falávamos. Babacas, não conseguiam pensar por si só. Bando de babacas.
No dia seguinte, nosso chefe nos perguntou o motivo da parada na furação. Eu fui claro:
- Choveu.
- Choveu? É isso que você tem a me dizer? CHOVEU O CARALHO! EU TRABALHEI NAQUELA CHUVA, VOCÊ, QUE É UM FILHO DA PUTA DE UM BÊBADO, NÃO PODE TRABALHAR?
- Choveu, o que eu posso fazer? Não posso mexer na máquina enquanto chove, você, que é o chefe, devia saber que o motor pode estragar com a água.
- ... - Os olhos dele estavam vermelhos da cor do inferno.
- Tá, quanto eu tenho que receber?
- Quanto tua mãe cobra? Tenho que pagar ela... - Ele sorriu. Eu também, gostei da insolência daquele gordo que fedia a couro suado. Cuspi na barriga dele e sai.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

À guerra

Até o barulho de uma manifestação se apaga se você abaixa a cabeça e ignora o que está acontecendo. O chuvisco não fazia nenhum efeito, nem os choros das mulheres sofrendo ao ver seus filhos sendo esbofeteados pelos policiais, nem as balas de borracha que zuniam pelo ar. Eu, sentado na praça, esperando o mundo acabar enquanto o mundo acabava em volta de mim, acendi um cigarro, abri uma garrafa de pinga e fiquei olhando para os vãos de terra entre as pedras do piso de cimento. Sempre me perguntei se os boxeadores choravam, eles apanham, apanham, apanham, devem chorar. Eu pensava, quando moleque, que eles choravam sempre, mas ninguém percebia, já que suas faces estavam sempre molhadas de suor. Era o suor com a lágrima, assim o lutador continuava imponente, forte, homem de verdade. Na praça, eu me sentia seguro, afinal, era a chuva que molhava meu rosto. Chuva e lágrima, assim eu continuava bêbado, chapado, um zé ninguém, um zero a esquerda.
Um tênis 46, ou maior, se é que existe pé maior que 46 tomou conta da terra que eu observava cautelosamente. Olhei para cima e vi um velho de aparência bastante saudável, muitíssimo mais saudável que eu. Vestia uma roupa de caminhar: tênis da Reebok, short azul marinho, regata branca e uma faixa de tenista na cabeça.
- O que foi, meu filho?
- Nada.
- De que lado você está?
- Lado nenhum. Estou do meu lado.
- Que bobeira, ninguém está sozinho.
- Eu estou sozinho e não dou a mínima.
- Vai prá guerra, filho, não fica de besteira ai. Apaga esse cigarro, joga fora essa pinga, vai tomar um rumo.
- Quem é você prá ficar me dando ordens? Cuida da tua vida, parece bem mais interessante.
- Eu sou seu pai, tenho o direito de opinar.
- Opine sobre a vida da tua mulher, que fica te corneando com o porteiro do prédio.
Ele se virou, sem falar nada, e continuou correndo. Velho idiota, acha que eu sou uma criança. Eu só era vago, pelo menos quando eu bebia. Eu só era um animal barulhento e arisco. Não queria uma mão para me acariciar, nem uma mão para me alimentar. Eu sabia me cuidar. Só cansei das mesmas lutas, das mesmas batalhas, do mesmo dia-a-dia. Não sou mais o esquerdóide que queria transformar o mundo em um lugar justo. Nem sou mais o direitóide revoltado com o governo de esquerda que tomou o poder e fez de gato e sapato o contribuinte. Não sou mais o torcedor fanático, nem o cristão fiel. Não sou mais o herói da família, muito menos o gênio. Sou o cara que senta na praça para ficar louco e chorar. Choro para caralho, não tenho vergonha disso. Tenho vergonha é de não saber mais amar a vida. Grande bosta a vida.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Natal

Mais um Natal. Eu odeio Natal, sempre odiei. Na verdade, quando moleque, eu gostava. Adorava a reunião de família, me dava bem com meus primos, éramos unidos. Eu gostava da Páscoa, lembro duma vez em que meus pais fizeram um rastro de patas de coelho para que eu e o meu irmão achassemos os ovos, uma espécie de caça ao tesouro. Enfim, não sei quando começou, mas hoje eu odeio o Natal, a Páscoa e todas as outras datas comemorativas.
Eu tinha vinte anos. Era 11h da manhã, véspera de Natal. Eu estava bêbado. Era normal eu estar bêbado nas vésperas. Véspera de amanhã, eu estava bêbado, e de depois de amanhã também. Na véspera de Natal acordei frustrado, me lamentando por não ter transado na noite anterior. Eu sempre transava, era um saco não transar. Aliás, minha vida se resumia em sexo. Houve um tempo que eu amava, mas passou, daí virou só putaria. Gosto da putaria. As minhas amigas temiam que eu me reapaixonasse quando eu beijei a minha ex-namorada. Eu também temia. Mas aconteceu nada mais nada menos que o desejo intenso de fazer sexo. Não é porque ela é ex que tive vontade de transar, é justo pelo motivo de eu só pensar em sexo. Bêbado e sexual, nada mais clichê, nada mais vulgar. Quem diria que o menino prodígio se tornaria um sujeito superficial?