sábado, 26 de dezembro de 2020

Arabescos

senti uma coceira nos braços
e cocei e cocei e cocei
até que eu me dei o trabalho de olhar
a vastidão da vermelhidão
só que nenhum vermelho
me tingia ali

arabescos se desenhavam em
linhas marrons por todo o meu corpo
e minha pele começou a contar histórias
que nunca foram minhas

cocei os olhos achando que era truque da luz
ou a lente secando    o sol confundindo    a vida sumindo
e a história passou a fazer parte de mim
como um milhão de livros de contos
que eu jamais pensaria em escrever

de repente tudo era novo e velho ao mesmo tempo
minha pele descolando dos braços enrugados
eu aceno pra um garoto de mochila nas costas
meus braços balançam no ar como o pêndulo de um relógio
eu lacrimejo de saudades e o menino entra em um carro
eu lavo as lágrimas que caem

e quando abro os olhos uma mão gigante me acaricia
e um rosto de uma mulher gigante me sorri com amabilidade
eu sinto o cheiro e o amor dela
pego um dos dedos com as duas mãos e aperto com força
a mulher me dá uma chupeta e eu durmo um sono longo e sem sonhos

acordo com o braço coçando
os arabescos que não são minha história se dissolvem
em vermelhidão abrupta
o sangue escorre dos rastros que minhas unhas fizeram

eu olho o relógio
e o tempo parou

até o próximo minuto
                                    chegar

A grande abertura

entrou nos meus ouvidos
e como uma lua
me trouxe a maré
todo esse mar encheu meus olhos
de uma tristeza salgada
que não era nem minha

arrepiando meus braços
abrindo meus poros
e me punindo
por não ser poeta
nem poesia

    uma tristeza
que não era minha

    mas de quem compôs
uma bela canção
    alguém poeta    
alguém poesia

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Masculinidade frágil

 a lição de casa era responder o que é a masculinidade?

lição difícil. eu não gosto de pensar na masculinidade. nunca gostei e nunca vou gostar. acho que esse posicionamento reitera - internamente -  todas as minhas opiniões - externas - que tenho sobre o assunto. refletir masculinidade é enfrentar o espelho, não o meu, mas o do mundo. é lembrar da tatuagem que não se gosta, mas que fica fora do alcance do olhar cotidiano. essa tatuagem eterna presa na pele de todos nós humanos, pois das mulheres também.

o menino que habita em mim nunca quis ser homem. eu tinha medo dos homens, dos bêbados e das multidões. se fosse uma multidão de mulheres, o menino não teria medo, mas no meio das multidões sempre há uma multidão de homens.

o homem que habita em mim nunca quis ser gente. sempre solidário a ideia de se matar assim que surgisse um momento propício. o tempo nunca vem e a ideia do desapego existencial alterna como marés. ora se ama a vida, ora se odeia, um processo cíclico que eu tenho a audácia de ora ou outra admitir que se trata de um processo linear, que de repente - ou não tanto - eu fui curado. e agora estou disposto a sobreviver sem meandros e dissoluções de realidade e atento aos prazeres e alegrias e disposições astronômicas que apenas nosso presente está disposto a nos presentear. eu sei que é uma fase, uma lua nova, uma lua cheia. uma hora a vontade de viver vai embora e todo esse tempo de terapia vai por ralo abaixo e começa tudo de novo. pois não estava aqui para justificar rodeios da vontade e da desvontade de viver. mas para esclarecer que o homem não quis ser gente porque nunca quis ser homem.

eu era criança e gostava de vestir os sapatos, vestidos e sutiãs da minha mãe. durante uns anos eu tive cabelo comprido, que cortei aos 10 anos de idade, e gostaria muito de usar brincos, nas duas orelhas, se possível, mas nunca as furei porque já era confundido com menina. não me incomodava a confusão. me incomodava a homofobia. eu não era gay, eu só queria ter nascido menina. e sem querer eu também era homofóbico, envolto na homofobia alheia que tocava a minha personalidade. a masculinidade nunca combinou com o meu corpo magro e sem pelos, por causa da puberdade atrasada.

o tempo passa, a sociedade nos coloca no nosso lugar: homem é homem, menino é menino, macaco é macaco, veado é veado, político é político e baitola é baitola. pelo menos era assim que o Falcão dizia. discordo em todas as partes. mas antes de a gente aprender a refletir com o próprio cérebro, nos colocam no nosso lugar. "repeat: homem é homem. menino é menino." homem é menino, conquanto ele seja branco, o inverso é válido para meninos negros. o racismo ainda existe e não existe em gotas sutis, pra muita gente, homem também pode ser macaco. não sei bem qual a diferença entre veado e baitola do Falcão, mas eles são homens sobretudo. e político, em sua extensa maioria, é homem branco.

e depois de pensar aqui sozinho, concluo que a masculinidade tem muito a ver com a branquitude. a masculinidade, ao meu ver, representa o que há de pior na humanidade. e há muito a humanidade é substantivo masculino. aí entra o ponto chave do desgosto pela vida. ser humano em uma humanidade homem. enquanto ela não volta a ser substantivo feminino, a humanidade será necropolítica.

eu vou definindo masculinidade como o futebol e a brincadeira de lutinha, o agarra agarra violento dos meninos que brincam, o homem menino que ainda brinca as mesmas brincadeiras. a masculinidade é o meu presidente, o presidente dos estados unidos, o homem menino sincero, sem pudor, sem nexo, sem bom senso. quanto maior a bandeira de ódio e violência que ele levantar - junto com um humor ácido e áspero, o humor de tio - maior o grau de masculinidade. masculinidade se divide entre ter músculos e ter barriga peluda. masculinidade é ostentar uma barba ou um carro. masculinidade é mostrar potência.

e nessa constante necessidade de reafirmação, a masculinidade se mostra frágil. pra mim, masculinidade é fragilidade. é reiteração de força, repetir tanto até acreditar. até o mundo inteiro acreditar. até que a humanidade fique presa nesses milênios de patriarcado, diminuindo as mulheres porque sim, nós, os homens, somos mais fortes, mais inteligentes, mais conscientes, mais preparados, mais pica grossa. e as mulheres são só sentimentais.

a masculinidade não tem sentimento. e eu tive muito, desde sempre. e com o tempo, como uma piada pra mim mesmo, me cresceu uma barba. eu, que sempre odiei a masculinidade, ostentava ela no rosto. não. minha barba não é masculinidade. é eu me lembrando todo o tempo que o tempo passou. e com o tempo eu aprendi. eu cai. eu levantei. eu piorei. eu melhorei. fui masculino demais. fui masculino de menos. e descobri que certas bandeiras não se levantam e certas bandeiras devem ser queimadas.

será que isso tudo não é um jeito de eu provar que a minha masculinidade é frágil? não, minha masculinidade é dura como pedra. eu jogo no chão, martelo, atropelo. tudo o que eu quero é transformá-la em pó e assim eu vivo contente sendo apenas eu e nunca mais homem. não funciona. masculino, cada vez mais masculino, cada vez menos andrógeno, cada vez mais adulto, cada vez mais consciente da delicadeza dos homens em volta de mim, cada vez mais duro aqui dentro. sentimental e frágil como um homem não deve ser, mas como todos nós somos.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

se é pra falar de amor
que se fale

c'est tout pour l'amour
en las calles

and i ask her
where is my wallet

ah meu amor
ela responde

só não perde a cabeça
porque tá presa
em mim

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

A catadora que cata o vento e guarda ele pra si

"eu pego a sucata lá embaixo
e vendo lá em cima" - ela aponta com o dedo
"quando dá tempo eu escrevo e reciclo meus pensamentos
mas normalmente só serve pra eu perceber
que a sucata sou eu"