quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Good vibes em dó maior

A zeladora do prédio, ao limpar o corredor do meu andar, virou o meu capacho. Seja Bem-Vindo virado pra quem sai de casa. No começo me incomodou. Eu tentei virar com os pés algumas vezes. Incomoda quando chego em casa, sem folego depois de subir a rua em morro. Me recuso a me abaixar. Depois me acostumei. Seja Bem-Vindo de ponta cabeça, não faz sentido. Mas ok, é um capacho, não uma carta de boas vindas. Podia ser sem impressão alguma que entraria em casa do mesmo jeito, batendo os pés antes de entrar.
Hoje sai olhando para o chão. E de repente vi sentido no capacho. Ele conversa comigo e não com um eventual visitante. Sou eu que piso nele vezes por dia. E ele me diz "Seja bem vindo ao mundo real". E eu sorrio, sentindo que hoje nada pode me fazer me sentir menos melhor. Olho o espelho do elevador e ele sorri, me respondendo com a mesma sinceridade do capacho. "Seja bem vindo ao mundo real".
O sol me cega e me inunda de mim, como se não me sentisse efetivamente completo há muito tempo. Eu transbordo. O vento joga o meu cabelo para cima e a sombra da Medusa persegue os meus passos, me protegendo de tudo com o olhar de pedra. Hoje eu sou invencível. O sol me lambe. O mundo real me ama.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Um quarto, um amigo e um incêndio

esse estado de exceção sobe
as paredes da minha alma como
as chamas das paredes de um museu

o universo pegando fogo e eu
preso aqui dentro dessa caixa
de pandora pronta pra explodir
como panela de pressão

dentro de mim
vivo de orelhas baixas
e sobrancelhas curvadas
a cara de cão assustado com
meu rabo sacudindo entre as
pernas
aqui eu sinto genuinamente
e as sutilezas dos fenômenos são tão reais
que aceito sem vergonha as quedas e as lágrimas
os desejos inibidos e os grandes pacotes de arrependimentos
as histórias que nos contam e a profusão de sofrimentos dessa pedra que os humanos juram ter conquistado

vestido com a minha melhor máscara
levanto o queixo e caminho em ritmo
como se as calçadas fossem passarelas
e os cidadãos fossem platéia
sentindo uma invencibilidade que ultrapassa
a masculinidade e a força dos músculos
e mais parecem super poderes escondidos
debaixo dos meus cabelos que voam como
num comercial de shampoo

uma hora isso explode
tudo é estado de exceção
e nossa vida se tornou um hiato
histórico de meios que justificam
fins

o fim nunca chega
e todas as partes de nós
estão vinculadas
de uma forma ou outra
nessa bola de neve subtropical

neve rala
suja de terra
enlamaçada

aqui não é diferente
o estado é de exceção
e isso me dá direitos
e privilégios que eu nunca
ousei pedir e agora simplesmente
agradeço a um deus imaginário

o meu deus imaginário

aquele preso comigo dentro da alma das paredes em chamas

e se me pusesse imaginar com mais vontade
saberia que ele me fez à sua imagem
olho nos olhos dele e vejo os meus
e a barba dele tão desgrenhada como a minha
combina com seus cabelos longos e lisos

se caísse nas mesmas correlações
que o público faz comigo
diria que ele pareceria com jesus
mas aqui não vivemos essa publicidade
da imagem do filho de deus

pois o meu deus imaginário
parece com o jesus imaginário
do imaginário popular
e essa imagem que o povo tem se desapega de detalhes
então o meu nariz torto e de ponta arredondada passa

e vivo essa experiência calorosa
de me curvar pra dentro da alma
e papear com o criador enquanto
o mundo acaba

everybody on the floor

quando agradeço a ele
as toneladas de bondades
que ele tem me oferecido
diz pra mim que não tem
nada com isso

responde que as coisas acontecem
e que ele não teria poder algum
senão satisfazer a minha necessidade
de ter alguém muito perto
na relação mais íntima que nenhuma
outra pessoa sequer chegou perto
de conhecer

se as coisas boas aconteceram
sem que fossem reflexo das tuas atitudes
foram ações de outras pessoas
agradeça a elas
não a mim
e se foram suas
aceite meus parabéns

ele me conhece bem
falamos das coisas que importam
como quem governa o mundo
quem sou eu
e quem é deus

esse deus é você
ele me responde
e você não é deus algum
logo não sou deus também

eu lembro do toque e esqueço
completamente de onde vim
a pele e a pele que se encontram
fazem fogo e isso é o suficiente
para eu sentir um pedaço pequeno de culpa
entendendo que eu sou responsável pelo
demorado e magistral fim do mundo

o estado é de exceção

tudo em chamas

deus falando comigo sobre aventuras
aquelas que ele mesmo não aprovaria
se fosse o deus de verdade
esse só me educa e diz onde errei
e aprova meus erros quando eles
me fazem bem

o inferno fazendo parte da existência
acompanhado de um deus que mais
parece um amigo imaginário
as coisas extremamente críticas
e tudo o que eu quero é dançar

contemplo as minhas dores
e elas não me doem
porque boio nessa liberdade

o estado de exceção
me fez perceber que o mundo
é a minha jaula
e a alma é a minha arma
contra a privação dos meus direitos

dentro de mim
esse fogo todo não me queima
eu boio livre e contente
enquanto choro pelo fim de nós

toque
doce toque
você me deu tanta coisa pra sentir
doce toque
você quase me convenceu que sou real