quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A faxina fez da sina um símbolo - Ou quando a Lua esquenta um corpo frio

chapado de pregabalina e com os fones 
de ouvindo judiando dos tímpanos
modelando guarda-roupas de portas coloridas
os sentimentos vão se arrumando
dentro do corpo e cada um tem o seu
lugar

as palavras que eu não digo são as
minhas Marie Kondos que guardam
os sentimentos nas devidas gavetas
e essa bagunça de pó e limo e musgo e lodo
vai aos poucos se sumindo
e aqui dentro tudo mais claro
pareço maior

os sentimentos não ficam só no coração
é claro que não ficam no coração
mas os sentimentos também não ficam
só compartimentados no meu cérebro

descem fluidos como fumaça densa pelas pernas
e logo os braços também tem seus sentimentos
e eu que nem sabia que sentia tanto

meu eu robô com seus programas todos organizados
em pastas de sentimentos alegres e contentes
e felizes e cheios de amor e esperança e essas coisas boas
que normalmente o pó e o limo e o musgo e o lodo
não me deixam nem ver

as palavras esfregando a alma até brilhar
e ali no fígado ficou uma tristeza
no rim uma gargalhada bem dada
na boca dormente um beijo bem dado
na barba comprida um tempo passado
nos olhos um tempo futuro
nas pálpebras pesadas a decepção de ser
nos dedos A Palavra

e outras tantas 
coisas em volta da 
minha cabeça como 
uma auréola de mim

finalmente santo
só porque um dia
senti



ela me perguntou qual era minha melhor memória
de nós dois
e eu não soube responder

me senti procurando uma blusa numa torre de roupas
roupas na cama e roupas na escrivaninha e roupas na cadeira
roupas penduradas e roupas dobradas e roupas jogadas
e eu buscando uma blusa

e bendita a palavra que
leva tudo ao seu bendito lugar
o pó e o limo e o musgo e o lodo
viram logo loco lugar
espaço pra me fazer sentir
e lembrar e esticar as costas e os braços
em uma sensação indescritível de
liberdade



pois é quando o gato finalmente a aceitou
o gato entrou debaixo das cobertas sobre ela
e ela que nem criança ficou toda emocionada

não sabia bem o que fazer
não queria se mexer
sorria largo de olhos marejados

passando os dedos bem de leve
sobre a cabeça daquele
gordo lindo que já dormia pesado

na nossa memória de nós dois
não sou nem protagonista
nem coadjuvante
mas só um espectador
que gosta tanto
que essa memória
exista



as memórias sempre tem som
os sentimentos, memória



lembro dela com o gato

como uma música calma

um piano lento
agudo
e triste

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Siga o Coelho Branco

foi assim que o mundo girou rápido demais e eu fiquei pra trás
segurando as mil coisas com as duas mãos e vestindo os sapatos enquanto anda
volta porque esqueceu as chaves e o casaco cai no chão
o mundo segue o mundo vai e vou pulando que nem lebre machucada
mancando de pés alternados até que caibam direito os tênis

levanto a mão como chamando o ônibus
e eu penso que não vale a pena correr
que nem tenho força e energia pra isso
mas eu sei que o mundo só vai
e não tem uma próxima linha que vai passar

o mundo sempre correndo de mim
e eu já arrumado de me vestir caminhando rápido
me interesso por leviandades que aparecem no caminho
ou minhas pernas e pulmões cansados me pedem um só fôlego de paz
ou eu brevemente desisto. foda-se o mundo. eu fico aqui. faço do vácuo o meu lugar,
imperador de esmolas. ou de nada.

o elefante branco sou eu
pesado e lento
preguiçoso e orgulhoso
nunca chego no mundo
e o mundo acena me chamando
como se lá
houvesse tanta gente
me esperando

continuo

sozinho
eu continuo

e nunca
mas nunca
chego em lugar nenhum

é tudo nada
e nada é mundo
que acena pra mim
no horizonte do vazio