sábado, 24 de maio de 2014

Dia de azar

Noite fria e as mãos dela geladas de suor. Acende outro cigarro. Ela demora. Mas parece tão rápido. Em seis minutos ela estava no elevador. Olha seu reflexo de relance e logo se vira de frente pra porta. O elevador é lento. Seis andares em que aquele homem aranha francês já estaria dentro do apartamento, mas o elevador custa subir. Será que eu peso 540kg e não sei? Se olha no espelho e se arrepende. A porta do elevador abre com um pin. As mãos dela estão suando. Ela toda sua. O cachecol a sufoca. Ela acende outro cigarro.
Na frente da porta, fica se perguntando se quer tocar a campanhia ou não. Viver o inevitável ou viver a ignorância? Ah, que merda. Ela sente os cabelos furiosos como uma juba. Ela furiosa como um leão. Bate o pé no chão e dói no calcanhar. Ela quer chorar.
Resolveu tocar a campanhia, pois sabia que o cara que ela pega há muito tempo estava com outra garota. As fontes eram sólidas e sei lá, ninguém quer morrer corno.
Ele demora. Ela tira o celular da bolsa, são 18h44 e o dia parece que nunca vai acabar. Tremendo, erra a bolsa e deixa o celular cair no chão. Percebe que sujou todo o capacho de cinzas de cigarro. Ela arruma o cabelo, olha para trás e ele abre a porta. Ela se vira e ele está de calça, zíper aberto. Ela consegue sentir o calor dele de longe. Ela sente vontade do calor. Quer abrir a calça dele, pois sabe que ali embaixo ele está sem cueca.
- Menina! Você não pode fumar aqui no corredor!
Pega o cigarro da boca dela e leva pra dentro. Ela não entra. Espera ele voltar.
- Tá sozinho?
- Não.
Sem reação. Que filho da puta. Sem nem mexer a porra da sobrancelha.
- Hm.
- Você tá bem?
- Não sei.
Ele tenta um abraço, ela sente nojo. Ela toca os braços dele, tentando impedir o abraço. E ele é o calor. Ela o empurra.
- Eu queria você.
- Não quer mais?
Ela deixa ser abraçada. Ele é tão quente.
- Quero.
- Agora?
- Não tem ninguém aí. Tem?
- Tem. Mas tem lugar pra mais um.
Ela o empurra com força. Ela acha que consegue ver ele emanando calor. A pele toda vermelha. Ela tem vontade de arranhar o peito dele, até que ele sangre por inteiro. Ela quer arranhar o rosto dele. Ela quer esfolá-lo vivo.
O ódio.
Ela procura a carteira do cigarro. Suas mãos trêmulas suam. Ela põe o cigarro na boca.
- Você não pode fumar aqui. Venha, vamos fumar lá dentro.
Ela quer gritar.
Foge pela escada de incêndio e se sente pulando num paraquedas. Seis andares em um longo salto triste, que ela bem que queria que resultasse em morte. E por falha técnica, ela chegaria lá embaixo rápido demais, sem paraquedas pra desacelerar a gravidade. Mas ela está viva, perdida na rua, pois não lembra onde deixou o carro. Ou se veio de carro.
As mãos dela suam, ela procura os cigarros que caíram no capacho cinzeiro. Tateia os bolsos e na jaqueta encontra o que ela não fumou no corredor. Ele está bem amassado, mas é o que tem. Ela atravessa a rua e senta no meio fio.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Piá

Não consigo mais ficar sozinho. Não me aguento. Estou elétrico e enquanto estou com alguém, essa eletricidade é transportada à outra pessoa. E quando estou sozinho, essa eletricidade estala os pelos dos meus braços. Os arrepios sobem e descem a minha espinha e encontram a minha orelha. Eu ouço tua voz. Coisas que eu nem consigo e nem tento ouvir. Só tua voz em português indistinto. E se eu fecho os meus olhos a tua boca se move com a voz. Eu me sinto tão infantil. Tão tolo. Bobo.

Não consigo deixar de sorrir sozinho. Sorriso largo de quem descobriu um mundo novo. Mas dentro da minha cabeça, o velho eu não se larga das velhas tradições. Me sinto elétrico. Apaixonado. Há quanto tempo não me sinto apaixonado. Tanto tempo que passei a achar que a paixão era fruto da solidão humana e que, na realidade, a paixão seria um filtro cognitivo. Tudo que se vê e tudo que se sente é aglutinado nessa estrutura de estacas profundas. O mundo sob os olhos de alguém que, em um mundo de plena solidão, acorda acompanhado e recebe carinho. Um mundo surreal.

Fico achando que meu momento preferido do dia é quando eu te vejo sem você me ver. Como esperando decorar com o olhar todos os detalhes. Num processo repetitivo de observação incógnita. Até que teus olhos encontram os meus e eu os vejo sorrir brilhantes. Fico achando que é coisa da minha cabeça. Que os olhos não sabem sorrir e que teus olhos são sempre brilhantes. O teu cabelo preto brilha. Eu quero todos os meus dedos perdidos nos teus cabelos que brilham. Me sinto tolo. Infantil. Tão Bobo.

Fico achando que não tem nada a ver com paixão, mas os eventos se sucedem em poesia pura, cheio de metáforas piegas. É uma estrela que vejo lá no céu, que eu sei que nunca esteve ali. Vênus, Afrodite, a Deusa do Amor, me avisando que brilha o brilho mais forte. Numa praia sem luz, a gente descobre que o outro gosta de astronomia. Escrevendo assim, a parte piegas se perde. Numa praia sem luz, apontamos as estrelas que conhecemos. E Vênus é a estrela mais brilhante. É que eu sei que Vênus brilhava pra mim, sem saber direito se teus olhos faziam o mesmo. E sob essas estrelas e planetas e toda a Via Láctea, nos beijamos o beijo que eu sempre quis. Ou é a âncora que você tem tatuada no pescoço. Que me prende o olhar. Meu sorriso envergonhado abre, consciente do significado dessa comparação. Meus olhos grudados no teu pescoço, na tua âncora da nuca. Amarrado na outra tatuagem, um laço pontilhado atrás da orelha. Um mundo em que não basta eu evitar admitir a paixão, mas em que ela encaixa nos meus olhos os seus filtros. Um mundo surreal.

tem nada a ver com paixão
só com os tantos detalhes
que eu guardei tão bem
na memória
do tato
das minhas mãos
do meu nariz e da minha boca

me sinto
piá
que espera o recreio
pra poder chegar
mais
perto