quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Divórcio

e eu saio dessa de cabeça erguida
afinal
será que nos teus braços seguros
eu estaria seguro?

com a felicidade de um homem livre
eu desisto de você
de novo
e você sorri

eu precisei de você,
e o teu conforto,
no meu quarto escuro,
me enganou tão bem

me segura
para todo o sempre
e me esmaga
sobre a tua pele quente

a gente se engana
ao se olhar no espelho
e fingir que está apaixonado
quando
tudo
acabou
faz tempo.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Escuridão

Acordei assustado. Eu não me acostumava nunca com os tiros. Quase quinze anos, acordando todas as noites. Tiros. Tiros. Tiros. De vez em quando alguém gritava. Eu odiava a noite. A gente tinha que dormir, mas não conseguia. Ouvia-se tiros e já corria-se atrás da AK. Porra, eu dei sorte na vida. Não é qualquer nego que têm AK-47 e pode dormir numa cama com colchão. Muita gente se protege com algum Santo. Uma imagem de Santo Antônio, São Jorge, Santa Sara, Santa Maria, uns Santos que a gente nem sabe nome. Daí tem os Orixás, Oxalá, Oxossi, Xangô, Ogum, uns Orixás que a gente nem sabe que existe. As pessoas se protegem como podem. Minha santa é a AK, que a gente comprou pra defender a favela. Que merda, eu odeio violência, mas como a gente pode viver, senão com a violência? Então os tiros batem nas paredes e a gente levanta correndo, naquela escuridão, saindo de um sonho decente. A gente não vive vida decente, só sonho decente. Esses dias sonhei que tava comendo um doce tão bonito, numa rua bonita, com gente bonita, minha roupa era bonita. Daí eu ouvi um tiro e levantei. Nada aqui é bonito. Nem fé, nem Deus, nem religião. É tudo escuro, de noite.
Certa vez, um politico veio vender uma favela melhor. E o povo, ignorante, votou tudo nele. O povo têm fé. E Jesus, pendurado sobre a porta do barraco, sofria pelos moradores. O filho da mãe prometeu casas novas e um esgoto, luz pra esse povo amaldiçoado. Então ganhou os votos e se elegeu. Fez tanta coisa boa. Deve ter feito. Eu teria feito. Queria ser deputado, senador, presidente, e comer um doce bonito, numa rua bonita, com gente bonita. Ele deve ter feito isso. Gastou bem o dinheiro do povo, com um doce. Se fosse só com doce...
Daí atiraram. Quebrou minha janela e eu acordei puto. Saí do barraco e fui atrás do corno que me abriu a janela. Eu estava tão furioso e meu sangue pulsava e eu carregava aquela arma, só vestido de calças, com os pés descalços, sentindo toda a merda da comunidade entrando nos meus dedos enquanto eu descia o morro.
Quando eu me vejo, estou na frente de um prédio: SAI DESSA PORRA! SAI DESSA PORRA AGORA! E o porteiro foge correndo e eu atiro na perna dele. FILHO DA PUTA! EU NÃO QUERO TE MACHUCAR! MAS EU SEI QUE VAI DAR MERDA! CALA A BOCA E FICA NO CHÃO! VOCÊ NÃO VAI MORRER! E eu já tava no elevador. Que cheiro horrível. Cheiro de merda. Como esses burgueses conseguem subir e descer no meio desse merdaral? O elevador abre, eu olho meus pés e eu tenho merda nas minhas unhas. Sou eu que estou fedendo. Toco a campanhia do 21. E ninguém atende. E eu toco de novo, uma, duas, sei lá, toco e ninguém atende e eu estou puto. Abriram a porra da minha janela e eu tava sonhando. AAAAAH, ABRE ESSA PORRA! E eu atiro na porta, algumas vezes. Quebro tudo e entro lá. As luzes apagadas. O tal do político que a gente votou entra na sala, chorando: Por favor, eu tenho filhos! E as crianças e a mulher soluçavam no quarto, dava pra ouvir. A polícia já estava lá embaixo. Porra, tudo isso por causa de uma janela. Me diz uma coisa: você gosta de doce? Ele está confuso, está tudo escuro. ME RESPONDE! VOCÊ GOSTA DE DOCE? Ele chora e diz Mas que doce? Por favor! Eu te dou tudo o que eu tenho! E eu começo a rir. Porra, tudo o que você tem? Então eu sou o novo ganhador da Mega-Sena. Finalmente a sorte grande. Dou-lhe dois tiros, mas está tudo escuro e eu não sei se acertei. Então começo a atirar pra todos os lados e as crianças e a mulher grita tão alto. Que cheiro de merda que tá isso aqui. Abro a geladeira e lá dentro tem bolo de chocolate! Cara, que delícia.
Os policias entram no apartamento gritando, eu no chão do corredor, fora do apartamento, comendo bolo, sem ninguém me ver. Porra, como é bom ser preto, ninguém tá me vendo, bando de otários. As portas dos apartamentos se abrem e tá o Brasil inteiro naquele corredor. Ninguém me vê. Pego as escadas, desco até a garagem. De lá é fácil, pulo pro mato que tem do lado e quando vejo, estou na minha cama, cheia de cacos de vidro. Está tão escuro e eu não sei onde eu posso pisar. Que merda de noite.

sábado, 3 de setembro de 2011

Herói

Minhas mãos eram pequenas. Tão pequenas que cabiam dentro de copos de geléia. Eu vestia esses copos no punho e saia a defender o mundo. Um herói de luvas de copo. O Super Geléia da Turma da Mônica.
Eu era pequeno e assistia televisão. Estava quente e os mosquitos tentavam me devorar vivo, eu odeio mosquitos. Passava muito das duas horas da madrugada. Eu sempre ficava acordado até tarde, pois tinha medo de dormir sozinho, naquele lugar que eu mal conhecia. E meu tio apareceu de cueca branca na sala. A cueca suja, um pingo de mijo. Ele não gostava de mim, eu tinha medo dele. Tinha uma barriga redonda e um rosto redondo e mãos enormes e redondas, se não me engano os pés também eram redondos. Ele sempre estava acompanhado de um copo de geléia, mas ao invés de estarem cheios com meus punhos, tinham cerveja. Estava sempre bêbado e peidava alto, coçava a bunda e os pentelhos dele apareciam. Seus olhos eram vazios e ele ria com os filhos. Eles o amavam. Eu tinha medo, um pouco de nojo.
Todas as noites, os mendigos batiam palmas e pediam comida. Morava em um bairro barra pesada e a gente não podia andar sossegado na rua, pelo menos é o que diziam meus primos. Eu não entendia o que era esse negócio de barra pesada, pra mim, era só mais um bairro qualquer. De vez em quando, ele dava comida aos mendigos e eles respondiam: Deus lhe abençoe, Tio. Eu não acreditava em Deus e não gostava dessa atitude, eu odiava aqueles maltrapilhos e achava que eles eram amigos do Homem do Saco, quando esses mendigos carregavam sacos, eu saia correndo e me escondia dentro da casa. Nunca falaram nada comigo. Quando meu tio não lhes dava comida, os mendigos ficavam violentos e diziam: Vá a merda, filho duma puta! E a gente costumava voltar a ver tv e o meu tio e meus primos voltavam a rir.
Certa vez, um dos mendigos não se contentou em mandar meu tio à merda. Entrou na casa e resolveu que queria brigar. Eu queria correr pro quarto, mas meus primos gostaram da movimentação e queriam assistir aquilo bem de perto. Meu tio foi educado, pôs a mão no ombro do velho e pediu pra que saisse da casa. Ele respondeu com uma joelhada na barriga redonda. O tio não sentiu nada, pois aquela camada de gordura alcoólica o protegia, levou o copo de geléia cheio de cerveja até o rosto do mendigo. E o copo quebrou e havia sangue e cerveja e cacos de vidro por todo lado. O mendigo saiu correndo e ficamos olhando uns para o outro com cara de assustados. Meu primo começou a rir e meu tio disse: Cuidado pra não pisarem nos cacos. Vistam seus chinelos, não quero ninguém cortado.
Olhei o meu copo de geléia, vazio de cerveja ou mãos ou qualquer coisa senão ar, levei-o até a cozinha, desviando dos cacos, e larguei ele na pia. Nunca mais os vesti. Não sou mais herói.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Mais um emprego

Houve uma época em que eu morava no centro da cidade em uma espécie de hostel para mendigos. Era um imóvel histórico, da época de muito tempo atrás, mas estava caindo aos pedaços e a fiação só dava problema e a descarga da privada estourava num dos quartos, de vez em quando, enchendo o quarto de merda e mijo e água e morte. Era um bom lugar, custava-me 20 reais a semana e eu tinha um quarto só para mim. Existiam quartos mais baratos, mas mais lotados e fedorentos. Infelizmente, a casa sempre fedia à maconha e toda hora ratos atravessavam a sala de tv (que não tinha tv, apenas 3 sofás mofados) e gatos corriam atrás dos ratos. Não era tão ruim, pois gosto de gatos.

Nessa época, estava trabalhando em uma empresa terceirizada à prefeitura, que fazia recapeamento asfáltico. Era um bom trabalho. Ou quase isso. Éramos em 4 caras, todos em silêncio e fazendo seus trabalhos sem encher uns aos outros, isso era bom. Normalmente os crioulos (sempre trabalhei com negros, crioulos e mulatos) eram preconceituosos com a minha pele escrotamente branca. Eu tentava entrar na brincadeira, mas eu era branco e eles não gostavam que eu brincasse com a cor deles, então eu ficava na minha. As leis referentes ao preconceito são completamente unilaterais, protegendo os negros e incitando-os a odiar cada vez mais os brancos. Enfim, os caras do asfalto eram gente boíssimas e não falavam muito.
O trabalho consistia em espalhar o carvão nos buracos e depois vazar aquele piche grosso sobre os pedregulhos que preenchiam o buraco. Um cara vinha com o rolo compactador e atropelava aquela merda toda. Acredito que não era um emprego muito saudável, mas eu precisava viver. Que curioso, quase morrer para viver. O pior dos trabalhos era mexer com o alcatrão ainda líquido. Aquele petróleo quente e fedorento pegava fogo constantemente e a única coisa que você podia fazer era apagar aquilo com a mão (com luvas grossas, obviamente) e torcer pra que nada exploda. O cheiro daquele óleo já era ruim, mas quando pegava fogo, eu podia sentir o meu pulmão virando cinza. Eu sentia que estava fumando 2 maços de cigarro em uma única tragada, só que todos esses cigarros tinham plástico e óleo e querosene e gasolina e petróleo e tudo isso e eu tragava e sentia que ia morrer.
Certo dia, tivemos que recapear o asfalto da frente de uma escola. E eu estava no alcatrão. Aquele piche começou a pegar fogo direto na boca da torneira do tanque e eu estava acostumado com essas merdas diárias. Quando me dei conta, vinte criancinhas de sei lá quantos anos me gritavam: Tio, tá pegando fogo! E elas estavam em pânico. De repente eu também estava com medo e eu não conseguia apagar o fogo. Corri dentro do caminhão e usei o extintor. Os outros 4 crioulos me olharam torto, o mais alto deles disse: Tá, vamos embora. O branquelo fodeu com o piche.
Antes que me demitissem, pedi demissão. Gastei o resto da grana com pinga e tive que mudar para um dos quartos cheios. 9 maltrapilhos fedorentos, 4 reais a semana, a cama do rato era embaixo da minha cama, a do gato era a minha cama. Todos roncavam e os animais não deixavam um ou outro dormir. Eu precisava de um emprego, aquilo não era vida.