sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Nautilus

segue fundo

na escuridão plena
onde os sinais de vida são
invisíveis e só sobram
sensações

na pressão absurda
onde a vida segue monstruosa
e um corpo humano
implodiria

o monstro navegante
que não é bem vindo
o exterior faz esforço
pra expurgá-lo

sobe ao teu nível
inconscientemente o entorno me diz
você não é bem vindo
aqui

o submarino segue

desviando do fundo que sobe com a topografia
como um avião que manobra contra uma montanha

bem fundo

sem destino certo

esperando encontrar
a verdade que eu preciso

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Brasil, a dicotomia política e o futebol de rua

A esquerda são os meninos que moram na rua debaixo. A rua debaixo não possui movimento e as casas são singelas e talvez algumas são pobres. O futebol acontece lá e a bola é deles. Ninguém sabe de quem exatamente é a bola. Só que a bola existe. Os gols são as havaianas de dois dos esquerdopatas. E o futebol tá sempre acontecendo. Mas não importa o quanto joguem repetidas vezes, não são bons jogadores, não possuem técnica e não se interessam pela regra. O campo não tem limite, a bola que bate no muro volta ao campo e o jogo segue. Escanteio não dá pra cobrar, pois a curvatura da rua não deixa a bola parada, então não há linha de fundo e o gol possui duas entradas, a da frente e a de trás. Ora ou outra alguém bate com a mão na bola e por mero fairplay a bola é passada para o outro time, mas sem cobrança de falta ou qualquer suspiro que paralise por um instante a partida. Os goleiros saem do gol e tentam dribles pela diversão, sem cuidado com o contra ataque eminente.

A direita é o menino que mora na rua de cima. Ele mora no condomínio da rua de cima. Estava jogando vídeo game, mas a mãe lhe deu uma bronca, pois onde já se viu ficar enfurnado em casa em um dia lindo como esse? Vai jogar bola com os meninos do bairro, filho! Ela tem boas intenções. Quer que o filho tenha amigos. Ele acha um saco, pois estava jogando com os seus amigos. O pai já não tem boas intenções. Fica preocupado quando o menino vai pra rua, pois a rua é extremamente perigosa. E se sequestram ele? Ou lhe roubam o celular? Ou coisa pior ainda? Melhor nem pensar nisso. O pai prefere que o filho brinque com os amigos da escola. Vai na casa dos amigos e passam o dia seguros dentro de condomínios. De leva uma mãe ainda cuida dessa criança.
O menino playboy não é o dono da bola. Porque ele não usaria as bolas que ele tem pra jogar na rua. Tem receio de riscá-las. Então só joga em quadras. E dentro de casa, é claro. Adora futebol. Tanto quanto MMA, que assiste com o pai ocasionalmente. E joga bem, afinal as aulinhas de futsal servem pra alguma coisa. Mas dentro de casa, só embaixadinha e pequenos dribles. Ele gosta da bola e tenta imitar o Neymar na sala de estar, quando está sozinho e lhe sobra energia. Veste a chuteira azul e a camisa 10 original do Barça, a laranja, pronto pra encarnar o Messi e dar show na rua debaixo.

Quando chega, ninguém gosta, mas ninguém fala nada. Só falam depois. O guri vai embora e a esquerda toda fica alvoroçada em reclamações. Os times estão completos. Ele pergunta em qual ele entra. O mais velho responde que espere o jogo acabar e logo formam três times e fazem uma Copinha. O mimadinho não gosta, mas não fala nada. Começa aquecer e se alongar na calçada, perto de um dos gols. Logo a bola bate num muro e o jogo continua e ele diz bem alto: "EI! LATERAL AQUI!"
Ninguém fala nada. O jogo segue. Tem um esquerdinha que não joga nada. Pequeno e magrelo, talvez o mais novo de todos ali. O direita o percebe na linha de defesa, enquanto a bola está lá longe no ataque. O guri da rua de cima chama o pequeno da debaixo, diz pra ele descansar, que ele entrava no lugar. O esquerdinha tem medo do playboy, que é mais alto, mais gordo, mais forte e mais velho, então não diz nada, só vai para casa sem ninguém perceber.

E assim que toca a bola no pé pela primeira vez, praticamente possui toda a posse de bola no restante do jogo. Ele joga bem, realmente bem. E dribla, defende e ataca. Faz gol atrás de gol. Cava falta, pisa nos pés descalços do time inimigo - porque aqui o outro time se torna inimigo, já que aquela alegria do esporte é trocada pela tensão da disputa -, reclama e xinga. Quer que os limites do campo estejam claros. Segura a bola com as mãos e sobe no meio fio: "ISSO AQUI É A LATERAL, PORRA. NÃO É PRA FICAR CORRENDO ATRÁS DA BOLA ENQUANTO ELA BATE NAS COISAS!"
Uma hora o time dele toma um gol. Xinga a zaga, xinga o goleiro, pega a bola com os pés e começa a embaixadinha. E fica nela. Ele é bom nisso. Não para. A bola não cai. Quando alguém tenta lhe tirar a bola, fica puto. Realmente puto. Ele não gosta dessa merda desse jogo. Nem soube contar quantos gols fez. Isso é fácil demais. Vocês são muito ruins. E vai embora arrastando a bola do pé.

Na frente de casa, percebe que ainda está com a bola. Uma bola feia, toda rasgada e estropiada. Chuta pra esquina e volta pra casa. Conta feliz pra mãe como jogou super bem e fez muitos gols. Ele é realmente um herói. A mãe sorri com ele.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Itinerário

Desço as escadas e encontro um vizinho. Se a segunda começa com um encontro, talvez a semana seja uma bagunça. Mania incorrigível dos humanos, vivendo em camadas de mentiras que justificam os loops da vida. Sempre prontos pra começar de novo quando vira um novo dia, uma nova semana, um novo mês ou um novo ano. Como se calendário e relógio fossem deuses que jamais ousamos duvidar da existência. E segue o processo, o de viver, ajustados a respeitar tudo isso e viver dentro dessas regras consuetudinárias. Enfim, o vizinho, um senhor pequeno e grande ao mesmo tempo, não muito baixo, um pouco menor que eu - que já sou uns dois ou três centímetros menor que a média -, nem gordo, nem forte, mas de certa forma corpulento. Chega à escadaria segundos antes de eu chegar no andar dele, pauso a música com o botão do fone de ouvido, eu sei que isso é um encontro. Eu odeio os encontros. Aqueço os músculos da face, abrindo e fechando a boca, ensaiando sorrisos porque sei que logo vou ter que usar um deles. Alguns degraus abaixo, depois do primeiro patamar, ele olha para trás. Eu sorrio, lhe dou bom dia. Ele responde bom dia e olha para frente. Talvez foi um micro encontro, talvez eu possa simplesmente dar play e ultrapasso ele com leveza e velocidade. Parece um plano. Chegamos no térreo e ele abre espaço para a ultrapassagem.
- Que dia lindo, não é mesmo? - Digo-lhe enquanto passo ao lado dele. Ele sorri pela primeira vez e diz que está maravilhoso.
Abro a porta do prédio e fico esperando ele passar. Estou atrasado, não quero esse encontro. Ele também não queria, eu acho. Mas eu crio o encontro. Ele me pergunta se faço faculdade, fico sabendo que mora ali a um ano e está aposentado e quer viajar e o destino dele é o parque do bairro, justificando o modelo fitness que vestia.
- Que ótimo, tem que aproveitar esse dia mesmo. Bom dia para o senhor, até outra hora. - Aceno e em simultaneidade, começo a música e acelero.

A música sempre faz coisas no meu cérebro. Às vezes não é bom. Às vezes a música me faz mal. Mesmo se é uma boa música. Mas outras vezes, talvez a maioria delas, é ótimo. O dia é lindo e eu estou na rua, o parque ainda faz sombra nas duas calçadas e a brisa gelada da manhã combina muito bem com o azul gritante do céu. As cores sempre são confusas com óculos escuro. Eu sei que o céu é azul, mas olho fixamente e procuro entender que cor vejo. Pois não decido. Chamo de azul. Meus olhos bem abertos, a rua viva de carros e gentes e cores. Sem o óculos não os abriria sob nenhuma justificativa. A luz viva ia entrar em mim como um ente físico violando os buracos que são minhas pupilas frágeis.
Será que alguma coisa mudou? Tudo parece tão diferente. Me sinto incrivelmente bem. Como se eu fosse de fato incrível e enquanto andasse ao ritmo da música parecesse incrível também. Incrível. O começo sempre tem cara de novo.
De novo. Isso vai ser divertido. Hoje eu posso ser o que eu quiser. Quem eu quero ser? E no mesmo lugar da mesma subida de sempre, quando estou rápido demais e sem cuidado com a respiração, meu cérebro, coração e respiração se confundem e logo o primeiro está fervendo. Na verdade as coisas começam aí, normalmente. O primeiro evento da manhã, a insuficiência de oxigênio, o coração pulando uma batida, o cérebro borbulhando. De novo tudo uma merda. Então me acostumei a me precaver. Todo dia, naquele ponto da rua, eu, pernas, tronco, música, somos um. E em ritmo, as coisas funcionam. O coração segue seguro. E hoje foi assim. O cérebro segue contente com a brisa gelada, a pele gosta desse sol quente. Um passo importante para um bom recomeço.
Será que algo mudou?

Percebo que estou ficando bom em caminhar rápido. Percebo que não tenho dor nenhuma. Talvez algumas fibras da planta do pé direito estejam um pouco tracionadas demais, como uma pós câimbra, mas a gente sobrevive. Um, dois, três, quatro, chimbal, caixa, chimbal, prato. A precisão do tempo dos passos com a música me impressiona. Um, dois, três, quatro. Os dedos das duas mãos batendo intensamente como um pianista empolgado, uma hora é bateria, outra baixo, outra teclado, outra são todos os metais ou as cordas ao mesmo tempo e sempre se misturam em instrumentos e notas e o corpo é a banda e o caminho é o tempo. A banda toca e o tempo passa.

"I want to know if you can help my husband. He has this terrible dream all the time where he's running, and running, but he's not getting anywhere."

Lembrei que sonhei com uma garota essa noite. Não lembro de a ter visto, aparentemente a desconheço. Mas lembro bem dela. E lembro que no sonho a procurava em uma balada. Nunca lembro de sonhos. Então eram flashs, nos quais ela não aparecia. Me pergunto como eu sabia como era o rosto dela se lembrava apenas de procurá-la. Pois lembro nitidamente. Era linda.
As pernas eram o baterista. Subitamente, o coração decide que quer ser o pianista. As pernas batendo, um, dois, um dois três quatro, um, dois, um dois três quatro. E o coração solta suas quatro notas crescentes, um dois três quatro, e para. Um dois três quatro. E para. Um dois três quatro. E para.
O cérebro se prepara para soltar o alerta. O coração não pode ser da banda, essa é a regra. Fica com a mão sobre o botão vermelho. Um dois três quatro. Respira. Inspira. Respira. Inspira.

"Feel the strain
And you see the stain
And you can't get back again"

Um dois três quatro. Respira. Inspira. Respira. Inspira. Passo, passo, passo, passo. O cérebro não segue vazio, pois é música. Passos compassados e uma tensão em volta de mim.

"- Edith...
- Yes?
- I love you...
- ... please, please!"

A música termina. O cérebro se alivia. Os olhos percebem as nuvens e que segunda deliciosa que ele vê. A música começa. Os passos se reorganizam. Segue rápido. Quase chegando. O cérebro segue um sintetizador, e antes de eu virar a cabeça para trás para saber se posso atravessar a rua, ele mesmo gira nesse sentido anti horário. Viro quase em seguida. Minha cabeça é o tecladista, pelo jeito. Quase chegando. O cérebro completa algumas voltas dentro do crânio. A primeira onda de suor é pulverizada do meu corpo quente como um Bom Ar Automático, aquele que assusta com o barulho repentino. Tss. Suor, meu Deus, que susto.

Subo as escadas e sei que a música precisa parar. Por mim andava a segunda toda. Sem parar, só sendo música. Andando em loop pra justificar repeat, sem calendário, só música. O tempo todo de música. Tiro o fone, enrolo com um pouco de pressa achando que chego na porta antes de tirar o óculos. Mas dá tempo, entro na sala clara. Me sento no canto, onde a luz do Sol não me atrapalha. Parece que alguma coisa mudou...

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Saturação

o dia era cinza
todo cinza
tinha cores de cinza
e cheiros de cinza
os sons eram cinzas
e tudo que meu corpo tocava
também

quando ficasse noite
será cinza também
apenas mais escuro
mas carente de qualquer
outra cor ou espectro
ou entidade que não seja
cinza

me pergunto se as pessoas estão cinzas
afinal não as vi em nenhum momento
mas as ouço de longe enquanto as ruas
fazem o som do mar distante
águas cinzas de espumas cinzentas

tento lembrar do que veio antes
pra tentar supor o que pode vir depois
mas minhas memórias também tem a mesma cor
e de cor julgo que não posso julgar
a cor do mundo não convence minha retina
meus ouvidos dóem como minhas pernas e
tudo parece cinza de novo

de novo
um eterno e repetitivo de novo
cinza e escuro de novo
a galinha
ou o ovo
tudo cinza
suas penas
e sua casca
os seus órgãos
e sua clara e sua gema
vivendo a eterna dúvida
será que o azul que você vê
é o mesmo azul que eu vejo?

o meu também é cinza

eu toco o céu

ele se desfaz
e cai leve e gentil
com a gravidade