terça-feira, 16 de abril de 2013

Destino d'alma

Se pudesse escolher qual o destino da minha alma na minha próxima vida, escolheria um gato. Imagino que não possamos escolher o destino da alma, mas suponhamos que seja, então eu escolheria ser um gato. Aliás, se o destino da alma pudesse ser escolhido, não entendo como resolvi ser gente. Vai ver fui cachorro e os cachorros adoram os humanos. E vai ver é por isso que não gosto tanto dos cachorros, como dos gatos. Pois é, faz sentido, fui cachorro e escolhi ser humano, agora sou humano e escolho ser gato.
Então vamos às minhas filosofias felinas. Talvez deitar-me sob o sol quente nesta tarde fria pudesse ser a mais valiosa das oportunidades. E quando meus pelos ficassem quentes demais, ia para a sombra, até que esfriassem e eu pudesse aproveitar o calor solar novamente. E viveria nesse ciclo eterno até que o dia acabasse. Não especifiquei as condições da minha vida gatuna, mas é claro que gostaria de ser um gato de apartamento, castrado e bem nutrido. Pois minha alma canina deve ter se esquecido de especificar a quem quer que nos atenda quando preenchemos as papeladas todas pra sairmos do céu (chamo de céu, mas fica em aberto o local, afinal me é de completo desconhecimento) que queria ser um menino rico e mimado, para crescer em um homem rico e mimado. Rico e esportista. Os cachorros adoram correr, então suponho que minha alma canina gostaria dum corpo humano que pudesse satisfazer essa necessidade intensa de correr atrás de bolas enquanto babo. Não obstante, meu esbelto corpo (e cérebro, não alma, que fique claro) não é fã de nenhum tipo de esporte. Então queria ser um gato de apartamento (talvez essa seja a parte mais importante: de apartamento, devido à longevidade e à segurança, além de todo o contexto de abrir mão de qualquer preocupação), castrado e bem nutrido.
Os homens me perguntariam o motivo de ser castrado, digo os homens, pois as mulheres não se importam tanto com as bolas e com o sexo como se importam os homens. Então respondo aos homens: o gato castrado é relativamente calmo, contente com as suas funções de dormir, comer e cagar, não nessa ordem, pois dormir normalmente se intercala entre essas funções (dormir, dormir, comer, dormir, cagar, dormir...) Também lembremos que se o gato é de apartamento e só pode transar com as gatinhas que estejam dentro do apartamento. Bom, deixemos de lado todas as suposições, é óbvio que o gato enjaulado não transa, e se não é castrado, tende a se jogar da janela como todo homem com sede de sexo.
Então eu teria todo o tempo de Sol para refletir sobre as cores do mundo da minha janela e do movimento periódico das moscas e do ilógico das mariposas assustadas, sem me preocupar com o resto da população da minha raça, nem com o almoço de hoje (que está num pote sujo, cheio de ração, a mesma ração durante a vida toda, para evitar que meus pelos caiam mais do que já caem), nem com as inconstitucionalidades da minha vida reclusa. Afinal é inconstitucional o cativeiro que eu viveria, obrigado a me sentir a vontade dentro dos metros quadrados (não estou pedindo muito, pode ser um apartamento pequeno) que seriam o meu pequeno e praticamente imutável mundo, enquanto eu me alimentaria sem entender a magia dos diferentes sabores que o planeta Terra tem a me oferecer, nem as outras magias mundiais que não vou especificar por três motivos: primeiro é a preguiça, segundo é que são muitas, terceiro é que o texto já toma proporções inimagináveis e o leitor não se sente a vontade em ler e ler e ler (culpa da internet!)
Pois eu gato não teria preocupações algumas, nem as minhas necessidades consumistas, pois não me seriam necessários nenhum aparato tecnológico (talvez caixas, gatos adoram caixas, presumo que eu poderia gostar de uma também); nem as minhas necessidades amorosas, pois o meu castramento me faria puro de todo e qualquer sentimentalismo; nem das minhas necessidades físicas, já que o meu dono seria responsável pelo fornecimento de comida, água e esgoto (sem nenhum tipo de tributação). Vivendo apenas sob um direito consuetudinário, no qual eu praticamente deveria lembrar onde posso ou não posso pisar. A pena é que o direito consuetudinário se faz à força, com muito tapa e xingamento, mas eu jamais iria imaginar a injustiça desse direito, pois, voltando às inconstitucionalidades, de nada serviria um volume de leis impressas se eu não soubesse ler e reivindicar esses meus direitos.
Só peço que não banqueteiem na minha frente, pois o cheiro da carne iria subir o meu cérebro e ativaria as memórias das minhas experiências ilegais (de acordo com o direito vigente) com a alimentação alternativa à massante e insossa ração. Então me bateriam e me xingariam de novo. Que mundo injusto, a vida sob uma eterna inconstância, ora amor e carinho, ora tapas e pontapés, mas a vida humana não é a mesma inconstância? Amor, carinho, tapas e pontapés? Então eu deitaria e dormiria mais um pouco, sonhando com banquetes e com inverdades inimagináveis sobre o mundo que não conheço.