sábado, 21 de maio de 2016

Insustentável

me enxaguei

e me ensaboei de novo

ao pegar o shampoo
percebo que eu já havia
terminado o meu banho

devolvo o frasco para o
lugar dele

a água é quente

muito quente

e lá fora
o ar é úmido
e a água congelada
entra nos fios dos cabelos
e da minha
barba

muito quente

olho para baixo
e o ralo se parece
comigo

ou a água sou eu
e eu derreto
transparente
e limpo

muito quente

como eu consigo me sentir tão bem aqui?
sozinho num retângulo de noventa por um e
dez

o tempo para

nada importa

o mundo não
tem mais sons
o mundo nem
existe
mais

só o som da água no meu corpo
e nas paredes
e na janela
e no piso

e o chuveiro
me cantando
em um contínuo
som gutural

muito quente - eu importo - e a água queima minha pele feliz
meu corpo feliz
minha vida feliz


tenho medo do banho

de entrar e não sair mais

nunca mais

despejando toda a represa do Córrego Grande
nas minhas costas

sem perceber
que gastei
toda a água
do mundo

muito quente

só calor
e o som
dali
de dentro

girei a torneira para a direita
pouco o suficiente
pra ficar mais quente

e eu conto até dez
e eu conto até dez
e eu conto até dez
e eu esqueço que estava contando
e estou no 241

giro mais
e fica mais quente

não consigo
mais
respirar
o vapor
que sai
de mim

desligo o chuveiro

e o mundo lá fora

volta a fazer barulho

enquanto o ralo
chora
e o chuveiro chora
o ar gruda
em mim
como o próximo
e gelado
segundo