quinta-feira, 7 de junho de 2018

Aqui embaixo os dias são mais curtos

a poesia vinha fria
entrando pelas frestas
das minhas roupas
e me congelando debaixo
para cima e de fora
para dentro

me explicando coisas
que eu muito bem sei
mas que não consigo explicar

esfria meus músculos
e suga tudo que há
de vital dentre
corpo e alma

conta que essa noite
sonhei um sonho
desesperado

que eu falava com um menino
de seus seis anos próximo da
divisa de um bosque e o terreno
de uma bela casa de revestimento em madeira
e esquadrias pretas onde
lá atrás no quintal com piscina
se dava uma festa de aniversário

eu sabia que eu tinha pouco tempo
sentia a ansiedade que antecede a explosão

era um menino comum
cabelo grosso castanho claro avermelhado
pele branca e sardas marrons claras
camiseta em listras de diferentes tamanhos
as mais grossas em amarelo
as intermediárias em vermelho
e linhas brancas
vestia bermuda jeans e tênis branco

eu me ajoelhei para ficar com os olhos na altura dos dele
e entendi que ele era uma criança
me concentrei
e disse

eu preciso que você preste muita atenção em mim

talvez você não vá me entender agora
mas se você um dia se lembrar disso
vou ter cumprido minha missão

e ele me olha atento
sem dizer uma palavra

ao longo do tempo você vai receber diferentes definições sobre si
e provavelmente você vai escolher uma dessas definições
a que mais te agrada
e vai usá-la como sua identidade

ele continuava a me olhar
e eu tinha certeza que ele não tava me entendendo

e é isso que todo mundo tá fazendo
pegando papéis disponíveis pra continuar participando da peça que é a existência humana

não deixe que isso aconteça
não pegue um papel disponível
descubra quem você é
e admita pra você mesmo
todas as suas qualidades e defeitos

um homem desce do patamar térreo da casa por uma linda escada sem corrimão e longos degraus de porcelanato escuro que se disfarçam muito bem com a vegetação do terreno
de cabelo castanho escuro com entradas de calvice
óculos de grau e sobretudo marrom sobre terno e gravata
os sapatos dele fazem barulho a cada passo que dá

o menino arregaça os olhos

o pai da criança pega o menino por um braço e lhe ordena que vão embora
ambos andam até um sedã preto
o garoto pergunta da mãe
o pai não lhe responde nada
o garoto me olha de novo
e eu grito

NÃO DEIXE QUE ELES ESCOLHAM QUEM VOCÊ É!

acordo com calor e com lembranças esporádicas desse sonho
durmo de novo

eu deixo a poesia vir
sair de mim pra que eu fique menos frio
ela vem fria
e não me deixa mais quente

penso em armas drogas e abortos
e dinheiro e casas e gentes
planos sonhos e possibilidades

a poesia tenta explicar isso tudo
soltando versos atrás de versos
em tinta preta em um fundo preto

e nesse fundo branco
busco pegar alguns desses versos
antes de serem impressos na vastidão
escura da minha mente confusa

mas não saem verdades
senão um sonho e uma memória
ou a ilusão dos controles dos detalhes
dos infinitos pensamentos que colam
e decolam e me libertam da realidade
ao enxergar o fundo tão de perto

minha poesia é assim
me enche inteiro
até que a solto
e fico vazio
uma casca pesada
sem frio
nem calor