terça-feira, 6 de setembro de 2011

Escuridão

Acordei assustado. Eu não me acostumava nunca com os tiros. Quase quinze anos, acordando todas as noites. Tiros. Tiros. Tiros. De vez em quando alguém gritava. Eu odiava a noite. A gente tinha que dormir, mas não conseguia. Ouvia-se tiros e já corria-se atrás da AK. Porra, eu dei sorte na vida. Não é qualquer nego que têm AK-47 e pode dormir numa cama com colchão. Muita gente se protege com algum Santo. Uma imagem de Santo Antônio, São Jorge, Santa Sara, Santa Maria, uns Santos que a gente nem sabe nome. Daí tem os Orixás, Oxalá, Oxossi, Xangô, Ogum, uns Orixás que a gente nem sabe que existe. As pessoas se protegem como podem. Minha santa é a AK, que a gente comprou pra defender a favela. Que merda, eu odeio violência, mas como a gente pode viver, senão com a violência? Então os tiros batem nas paredes e a gente levanta correndo, naquela escuridão, saindo de um sonho decente. A gente não vive vida decente, só sonho decente. Esses dias sonhei que tava comendo um doce tão bonito, numa rua bonita, com gente bonita, minha roupa era bonita. Daí eu ouvi um tiro e levantei. Nada aqui é bonito. Nem fé, nem Deus, nem religião. É tudo escuro, de noite.
Certa vez, um politico veio vender uma favela melhor. E o povo, ignorante, votou tudo nele. O povo têm fé. E Jesus, pendurado sobre a porta do barraco, sofria pelos moradores. O filho da mãe prometeu casas novas e um esgoto, luz pra esse povo amaldiçoado. Então ganhou os votos e se elegeu. Fez tanta coisa boa. Deve ter feito. Eu teria feito. Queria ser deputado, senador, presidente, e comer um doce bonito, numa rua bonita, com gente bonita. Ele deve ter feito isso. Gastou bem o dinheiro do povo, com um doce. Se fosse só com doce...
Daí atiraram. Quebrou minha janela e eu acordei puto. Saí do barraco e fui atrás do corno que me abriu a janela. Eu estava tão furioso e meu sangue pulsava e eu carregava aquela arma, só vestido de calças, com os pés descalços, sentindo toda a merda da comunidade entrando nos meus dedos enquanto eu descia o morro.
Quando eu me vejo, estou na frente de um prédio: SAI DESSA PORRA! SAI DESSA PORRA AGORA! E o porteiro foge correndo e eu atiro na perna dele. FILHO DA PUTA! EU NÃO QUERO TE MACHUCAR! MAS EU SEI QUE VAI DAR MERDA! CALA A BOCA E FICA NO CHÃO! VOCÊ NÃO VAI MORRER! E eu já tava no elevador. Que cheiro horrível. Cheiro de merda. Como esses burgueses conseguem subir e descer no meio desse merdaral? O elevador abre, eu olho meus pés e eu tenho merda nas minhas unhas. Sou eu que estou fedendo. Toco a campanhia do 21. E ninguém atende. E eu toco de novo, uma, duas, sei lá, toco e ninguém atende e eu estou puto. Abriram a porra da minha janela e eu tava sonhando. AAAAAH, ABRE ESSA PORRA! E eu atiro na porta, algumas vezes. Quebro tudo e entro lá. As luzes apagadas. O tal do político que a gente votou entra na sala, chorando: Por favor, eu tenho filhos! E as crianças e a mulher soluçavam no quarto, dava pra ouvir. A polícia já estava lá embaixo. Porra, tudo isso por causa de uma janela. Me diz uma coisa: você gosta de doce? Ele está confuso, está tudo escuro. ME RESPONDE! VOCÊ GOSTA DE DOCE? Ele chora e diz Mas que doce? Por favor! Eu te dou tudo o que eu tenho! E eu começo a rir. Porra, tudo o que você tem? Então eu sou o novo ganhador da Mega-Sena. Finalmente a sorte grande. Dou-lhe dois tiros, mas está tudo escuro e eu não sei se acertei. Então começo a atirar pra todos os lados e as crianças e a mulher grita tão alto. Que cheiro de merda que tá isso aqui. Abro a geladeira e lá dentro tem bolo de chocolate! Cara, que delícia.
Os policias entram no apartamento gritando, eu no chão do corredor, fora do apartamento, comendo bolo, sem ninguém me ver. Porra, como é bom ser preto, ninguém tá me vendo, bando de otários. As portas dos apartamentos se abrem e tá o Brasil inteiro naquele corredor. Ninguém me vê. Pego as escadas, desco até a garagem. De lá é fácil, pulo pro mato que tem do lado e quando vejo, estou na minha cama, cheia de cacos de vidro. Está tão escuro e eu não sei onde eu posso pisar. Que merda de noite.