sábado, 3 de setembro de 2011

Herói

Minhas mãos eram pequenas. Tão pequenas que cabiam dentro de copos de geléia. Eu vestia esses copos no punho e saia a defender o mundo. Um herói de luvas de copo. O Super Geléia da Turma da Mônica.
Eu era pequeno e assistia televisão. Estava quente e os mosquitos tentavam me devorar vivo, eu odeio mosquitos. Passava muito das duas horas da madrugada. Eu sempre ficava acordado até tarde, pois tinha medo de dormir sozinho, naquele lugar que eu mal conhecia. E meu tio apareceu de cueca branca na sala. A cueca suja, um pingo de mijo. Ele não gostava de mim, eu tinha medo dele. Tinha uma barriga redonda e um rosto redondo e mãos enormes e redondas, se não me engano os pés também eram redondos. Ele sempre estava acompanhado de um copo de geléia, mas ao invés de estarem cheios com meus punhos, tinham cerveja. Estava sempre bêbado e peidava alto, coçava a bunda e os pentelhos dele apareciam. Seus olhos eram vazios e ele ria com os filhos. Eles o amavam. Eu tinha medo, um pouco de nojo.
Todas as noites, os mendigos batiam palmas e pediam comida. Morava em um bairro barra pesada e a gente não podia andar sossegado na rua, pelo menos é o que diziam meus primos. Eu não entendia o que era esse negócio de barra pesada, pra mim, era só mais um bairro qualquer. De vez em quando, ele dava comida aos mendigos e eles respondiam: Deus lhe abençoe, Tio. Eu não acreditava em Deus e não gostava dessa atitude, eu odiava aqueles maltrapilhos e achava que eles eram amigos do Homem do Saco, quando esses mendigos carregavam sacos, eu saia correndo e me escondia dentro da casa. Nunca falaram nada comigo. Quando meu tio não lhes dava comida, os mendigos ficavam violentos e diziam: Vá a merda, filho duma puta! E a gente costumava voltar a ver tv e o meu tio e meus primos voltavam a rir.
Certa vez, um dos mendigos não se contentou em mandar meu tio à merda. Entrou na casa e resolveu que queria brigar. Eu queria correr pro quarto, mas meus primos gostaram da movimentação e queriam assistir aquilo bem de perto. Meu tio foi educado, pôs a mão no ombro do velho e pediu pra que saisse da casa. Ele respondeu com uma joelhada na barriga redonda. O tio não sentiu nada, pois aquela camada de gordura alcoólica o protegia, levou o copo de geléia cheio de cerveja até o rosto do mendigo. E o copo quebrou e havia sangue e cerveja e cacos de vidro por todo lado. O mendigo saiu correndo e ficamos olhando uns para o outro com cara de assustados. Meu primo começou a rir e meu tio disse: Cuidado pra não pisarem nos cacos. Vistam seus chinelos, não quero ninguém cortado.
Olhei o meu copo de geléia, vazio de cerveja ou mãos ou qualquer coisa senão ar, levei-o até a cozinha, desviando dos cacos, e larguei ele na pia. Nunca mais os vesti. Não sou mais herói.