sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Mais um emprego

Houve uma época em que eu morava no centro da cidade em uma espécie de hostel para mendigos. Era um imóvel histórico, da época de muito tempo atrás, mas estava caindo aos pedaços e a fiação só dava problema e a descarga da privada estourava num dos quartos, de vez em quando, enchendo o quarto de merda e mijo e água e morte. Era um bom lugar, custava-me 20 reais a semana e eu tinha um quarto só para mim. Existiam quartos mais baratos, mas mais lotados e fedorentos. Infelizmente, a casa sempre fedia à maconha e toda hora ratos atravessavam a sala de tv (que não tinha tv, apenas 3 sofás mofados) e gatos corriam atrás dos ratos. Não era tão ruim, pois gosto de gatos.

Nessa época, estava trabalhando em uma empresa terceirizada à prefeitura, que fazia recapeamento asfáltico. Era um bom trabalho. Ou quase isso. Éramos em 4 caras, todos em silêncio e fazendo seus trabalhos sem encher uns aos outros, isso era bom. Normalmente os crioulos (sempre trabalhei com negros, crioulos e mulatos) eram preconceituosos com a minha pele escrotamente branca. Eu tentava entrar na brincadeira, mas eu era branco e eles não gostavam que eu brincasse com a cor deles, então eu ficava na minha. As leis referentes ao preconceito são completamente unilaterais, protegendo os negros e incitando-os a odiar cada vez mais os brancos. Enfim, os caras do asfalto eram gente boíssimas e não falavam muito.
O trabalho consistia em espalhar o carvão nos buracos e depois vazar aquele piche grosso sobre os pedregulhos que preenchiam o buraco. Um cara vinha com o rolo compactador e atropelava aquela merda toda. Acredito que não era um emprego muito saudável, mas eu precisava viver. Que curioso, quase morrer para viver. O pior dos trabalhos era mexer com o alcatrão ainda líquido. Aquele petróleo quente e fedorento pegava fogo constantemente e a única coisa que você podia fazer era apagar aquilo com a mão (com luvas grossas, obviamente) e torcer pra que nada exploda. O cheiro daquele óleo já era ruim, mas quando pegava fogo, eu podia sentir o meu pulmão virando cinza. Eu sentia que estava fumando 2 maços de cigarro em uma única tragada, só que todos esses cigarros tinham plástico e óleo e querosene e gasolina e petróleo e tudo isso e eu tragava e sentia que ia morrer.
Certo dia, tivemos que recapear o asfalto da frente de uma escola. E eu estava no alcatrão. Aquele piche começou a pegar fogo direto na boca da torneira do tanque e eu estava acostumado com essas merdas diárias. Quando me dei conta, vinte criancinhas de sei lá quantos anos me gritavam: Tio, tá pegando fogo! E elas estavam em pânico. De repente eu também estava com medo e eu não conseguia apagar o fogo. Corri dentro do caminhão e usei o extintor. Os outros 4 crioulos me olharam torto, o mais alto deles disse: Tá, vamos embora. O branquelo fodeu com o piche.
Antes que me demitissem, pedi demissão. Gastei o resto da grana com pinga e tive que mudar para um dos quartos cheios. 9 maltrapilhos fedorentos, 4 reais a semana, a cama do rato era embaixo da minha cama, a do gato era a minha cama. Todos roncavam e os animais não deixavam um ou outro dormir. Eu precisava de um emprego, aquilo não era vida.