sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

História de ninar

Sobe a subida, que de repente é ladeira e logo é morro e então colina e se posta lá, sentado no topo, no pico. Cruza as pernas de índio e sente o vento e as nuvens enquanto espera o céu ruir. Espera que lhe busquem, crendo que a sociedade sente sua falta e se arde em prantos de pura e sincera saudade. Espera até que lhe crescem pelos e logo estes pelos estão longos e lhe coçam as faces. E o mundo evolui entre guerras e doenças e morte e fome, globalizando a semente da ideia de que os seres humanos são iguais até que as cores e o que outrora fosse chamado de raça se unissem em uma só expressão, do desconhecimento das outras culturas à uma cultura só. Espera e suas unhas se espiralizam em um tom de casca de madeira e seus cabelos já descem a colina e sua fome já não cabe mais no mundo. Então ele acorda numa manhã qualquer e o céu se abre à uma figura extraordinária, um homem de quilômetros por quilômetros, de barbas brancas como as nuvens e a pele lisa como as nuvens e os olhos puros como as nuvens. Então ele se levanta e todos os seus ossos rangem como portões de aço, vazam suas roupas numa líquida queda, sem tocar qualquer centímetro de sua pele magra. E ele percebe que está muito maior e ele percebe que é uma árvore. Deus o vê, Deus o sente, Deus o ama. Ele se sente amado e quente. Tem saudade do corpo de uma mulher tocando cada poro de seu corpo. Por isso corta as unhas métricas e os cabelo e barba quilométricos e sorri a Deus. Deus lhe sorri de volta. Deus o ama, mas o amor de Deus não lhe é suficiente, então ele desce a colina e o morro e a ladeira e vê um mundo novo, na qual ninguém percebe sua nudez magérrima. Os humanos andam de lá para cá, absorvidos pela própria consciência. Ele sente frio. Senta no chão. Logo lhe dão umas moedas, uns trapos para vestir, uns restos pra comer, um canto pra dormir, uma vida pra viver. Então ele esquece de Deus e vive e sucede e ama e odeia e ganha e perde e finalmente se casa e tem um filho, ao passo que, em certa noite, quando o filho lhe pede uma história, o pai lhe conta essa.