segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Itinerário

Desço as escadas e encontro um vizinho. Se a segunda começa com um encontro, talvez a semana seja uma bagunça. Mania incorrigível dos humanos, vivendo em camadas de mentiras que justificam os loops da vida. Sempre prontos pra começar de novo quando vira um novo dia, uma nova semana, um novo mês ou um novo ano. Como se calendário e relógio fossem deuses que jamais ousamos duvidar da existência. E segue o processo, o de viver, ajustados a respeitar tudo isso e viver dentro dessas regras consuetudinárias. Enfim, o vizinho, um senhor pequeno e grande ao mesmo tempo, não muito baixo, um pouco menor que eu - que já sou uns dois ou três centímetros menor que a média -, nem gordo, nem forte, mas de certa forma corpulento. Chega à escadaria segundos antes de eu chegar no andar dele, pauso a música com o botão do fone de ouvido, eu sei que isso é um encontro. Eu odeio os encontros. Aqueço os músculos da face, abrindo e fechando a boca, ensaiando sorrisos porque sei que logo vou ter que usar um deles. Alguns degraus abaixo, depois do primeiro patamar, ele olha para trás. Eu sorrio, lhe dou bom dia. Ele responde bom dia e olha para frente. Talvez foi um micro encontro, talvez eu possa simplesmente dar play e ultrapasso ele com leveza e velocidade. Parece um plano. Chegamos no térreo e ele abre espaço para a ultrapassagem.
- Que dia lindo, não é mesmo? - Digo-lhe enquanto passo ao lado dele. Ele sorri pela primeira vez e diz que está maravilhoso.
Abro a porta do prédio e fico esperando ele passar. Estou atrasado, não quero esse encontro. Ele também não queria, eu acho. Mas eu crio o encontro. Ele me pergunta se faço faculdade, fico sabendo que mora ali a um ano e está aposentado e quer viajar e o destino dele é o parque do bairro, justificando o modelo fitness que vestia.
- Que ótimo, tem que aproveitar esse dia mesmo. Bom dia para o senhor, até outra hora. - Aceno e em simultaneidade, começo a música e acelero.

A música sempre faz coisas no meu cérebro. Às vezes não é bom. Às vezes a música me faz mal. Mesmo se é uma boa música. Mas outras vezes, talvez a maioria delas, é ótimo. O dia é lindo e eu estou na rua, o parque ainda faz sombra nas duas calçadas e a brisa gelada da manhã combina muito bem com o azul gritante do céu. As cores sempre são confusas com óculos escuro. Eu sei que o céu é azul, mas olho fixamente e procuro entender que cor vejo. Pois não decido. Chamo de azul. Meus olhos bem abertos, a rua viva de carros e gentes e cores. Sem o óculos não os abriria sob nenhuma justificativa. A luz viva ia entrar em mim como um ente físico violando os buracos que são minhas pupilas frágeis.
Será que alguma coisa mudou? Tudo parece tão diferente. Me sinto incrivelmente bem. Como se eu fosse de fato incrível e enquanto andasse ao ritmo da música parecesse incrível também. Incrível. O começo sempre tem cara de novo.
De novo. Isso vai ser divertido. Hoje eu posso ser o que eu quiser. Quem eu quero ser? E no mesmo lugar da mesma subida de sempre, quando estou rápido demais e sem cuidado com a respiração, meu cérebro, coração e respiração se confundem e logo o primeiro está fervendo. Na verdade as coisas começam aí, normalmente. O primeiro evento da manhã, a insuficiência de oxigênio, o coração pulando uma batida, o cérebro borbulhando. De novo tudo uma merda. Então me acostumei a me precaver. Todo dia, naquele ponto da rua, eu, pernas, tronco, música, somos um. E em ritmo, as coisas funcionam. O coração segue seguro. E hoje foi assim. O cérebro segue contente com a brisa gelada, a pele gosta desse sol quente. Um passo importante para um bom recomeço.
Será que algo mudou?

Percebo que estou ficando bom em caminhar rápido. Percebo que não tenho dor nenhuma. Talvez algumas fibras da planta do pé direito estejam um pouco tracionadas demais, como uma pós câimbra, mas a gente sobrevive. Um, dois, três, quatro, chimbal, caixa, chimbal, prato. A precisão do tempo dos passos com a música me impressiona. Um, dois, três, quatro. Os dedos das duas mãos batendo intensamente como um pianista empolgado, uma hora é bateria, outra baixo, outra teclado, outra são todos os metais ou as cordas ao mesmo tempo e sempre se misturam em instrumentos e notas e o corpo é a banda e o caminho é o tempo. A banda toca e o tempo passa.

"I want to know if you can help my husband. He has this terrible dream all the time where he's running, and running, but he's not getting anywhere."

Lembrei que sonhei com uma garota essa noite. Não lembro de a ter visto, aparentemente a desconheço. Mas lembro bem dela. E lembro que no sonho a procurava em uma balada. Nunca lembro de sonhos. Então eram flashs, nos quais ela não aparecia. Me pergunto como eu sabia como era o rosto dela se lembrava apenas de procurá-la. Pois lembro nitidamente. Era linda.
As pernas eram o baterista. Subitamente, o coração decide que quer ser o pianista. As pernas batendo, um, dois, um dois três quatro, um, dois, um dois três quatro. E o coração solta suas quatro notas crescentes, um dois três quatro, e para. Um dois três quatro. E para. Um dois três quatro. E para.
O cérebro se prepara para soltar o alerta. O coração não pode ser da banda, essa é a regra. Fica com a mão sobre o botão vermelho. Um dois três quatro. Respira. Inspira. Respira. Inspira.

"Feel the strain
And you see the stain
And you can't get back again"

Um dois três quatro. Respira. Inspira. Respira. Inspira. Passo, passo, passo, passo. O cérebro não segue vazio, pois é música. Passos compassados e uma tensão em volta de mim.

"- Edith...
- Yes?
- I love you...
- ... please, please!"

A música termina. O cérebro se alivia. Os olhos percebem as nuvens e que segunda deliciosa que ele vê. A música começa. Os passos se reorganizam. Segue rápido. Quase chegando. O cérebro segue um sintetizador, e antes de eu virar a cabeça para trás para saber se posso atravessar a rua, ele mesmo gira nesse sentido anti horário. Viro quase em seguida. Minha cabeça é o tecladista, pelo jeito. Quase chegando. O cérebro completa algumas voltas dentro do crânio. A primeira onda de suor é pulverizada do meu corpo quente como um Bom Ar Automático, aquele que assusta com o barulho repentino. Tss. Suor, meu Deus, que susto.

Subo as escadas e sei que a música precisa parar. Por mim andava a segunda toda. Sem parar, só sendo música. Andando em loop pra justificar repeat, sem calendário, só música. O tempo todo de música. Tiro o fone, enrolo com um pouco de pressa achando que chego na porta antes de tirar o óculos. Mas dá tempo, entro na sala clara. Me sento no canto, onde a luz do Sol não me atrapalha. Parece que alguma coisa mudou...