terça-feira, 12 de setembro de 2017

Brasil, a dicotomia política e o futebol de rua

A esquerda são os meninos que moram na rua debaixo. A rua debaixo não possui movimento e as casas são singelas e talvez algumas são pobres. O futebol acontece lá e a bola é deles. Ninguém sabe de quem exatamente é a bola. Só que a bola existe. Os gols são as havaianas de dois dos esquerdopatas. E o futebol tá sempre acontecendo. Mas não importa o quanto joguem repetidas vezes, não são bons jogadores, não possuem técnica e não se interessam pela regra. O campo não tem limite, a bola que bate no muro volta ao campo e o jogo segue. Escanteio não dá pra cobrar, pois a curvatura da rua não deixa a bola parada, então não há linha de fundo e o gol possui duas entradas, a da frente e a de trás. Ora ou outra alguém bate com a mão na bola e por mero fairplay a bola é passada para o outro time, mas sem cobrança de falta ou qualquer suspiro que paralise por um instante a partida. Os goleiros saem do gol e tentam dribles pela diversão, sem cuidado com o contra ataque eminente.

A direita é o menino que mora na rua de cima. Ele mora no condomínio da rua de cima. Estava jogando vídeo game, mas a mãe lhe deu uma bronca, pois onde já se viu ficar enfurnado em casa em um dia lindo como esse? Vai jogar bola com os meninos do bairro, filho! Ela tem boas intenções. Quer que o filho tenha amigos. Ele acha um saco, pois estava jogando com os seus amigos. O pai já não tem boas intenções. Fica preocupado quando o menino vai pra rua, pois a rua é extremamente perigosa. E se sequestram ele? Ou lhe roubam o celular? Ou coisa pior ainda? Melhor nem pensar nisso. O pai prefere que o filho brinque com os amigos da escola. Vai na casa dos amigos e passam o dia seguros dentro de condomínios. De leva uma mãe ainda cuida dessa criança.
O menino playboy não é o dono da bola. Porque ele não usaria as bolas que ele tem pra jogar na rua. Tem receio de riscá-las. Então só joga em quadras. E dentro de casa, é claro. Adora futebol. Tanto quanto MMA, que assiste com o pai ocasionalmente. E joga bem, afinal as aulinhas de futsal servem pra alguma coisa. Mas dentro de casa, só embaixadinha e pequenos dribles. Ele gosta da bola e tenta imitar o Neymar na sala de estar, quando está sozinho e lhe sobra energia. Veste a chuteira azul e a camisa 10 original do Barça, a laranja, pronto pra encarnar o Messi e dar show na rua debaixo.

Quando chega, ninguém gosta, mas ninguém fala nada. Só falam depois. O guri vai embora e a esquerda toda fica alvoroçada em reclamações. Os times estão completos. Ele pergunta em qual ele entra. O mais velho responde que espere o jogo acabar e logo formam três times e fazem uma Copinha. O mimadinho não gosta, mas não fala nada. Começa aquecer e se alongar na calçada, perto de um dos gols. Logo a bola bate num muro e o jogo continua e ele diz bem alto: "EI! LATERAL AQUI!"
Ninguém fala nada. O jogo segue. Tem um esquerdinha que não joga nada. Pequeno e magrelo, talvez o mais novo de todos ali. O direita o percebe na linha de defesa, enquanto a bola está lá longe no ataque. O guri da rua de cima chama o pequeno da debaixo, diz pra ele descansar, que ele entrava no lugar. O esquerdinha tem medo do playboy, que é mais alto, mais gordo, mais forte e mais velho, então não diz nada, só vai para casa sem ninguém perceber.

E assim que toca a bola no pé pela primeira vez, praticamente possui toda a posse de bola no restante do jogo. Ele joga bem, realmente bem. E dribla, defende e ataca. Faz gol atrás de gol. Cava falta, pisa nos pés descalços do time inimigo - porque aqui o outro time se torna inimigo, já que aquela alegria do esporte é trocada pela tensão da disputa -, reclama e xinga. Quer que os limites do campo estejam claros. Segura a bola com as mãos e sobe no meio fio: "ISSO AQUI É A LATERAL, PORRA. NÃO É PRA FICAR CORRENDO ATRÁS DA BOLA ENQUANTO ELA BATE NAS COISAS!"
Uma hora o time dele toma um gol. Xinga a zaga, xinga o goleiro, pega a bola com os pés e começa a embaixadinha. E fica nela. Ele é bom nisso. Não para. A bola não cai. Quando alguém tenta lhe tirar a bola, fica puto. Realmente puto. Ele não gosta dessa merda desse jogo. Nem soube contar quantos gols fez. Isso é fácil demais. Vocês são muito ruins. E vai embora arrastando a bola do pé.

Na frente de casa, percebe que ainda está com a bola. Uma bola feia, toda rasgada e estropiada. Chuta pra esquina e volta pra casa. Conta feliz pra mãe como jogou super bem e fez muitos gols. Ele é realmente um herói. A mãe sorri com ele.