terça-feira, 7 de novembro de 2017

A égua da noite

A luz acende. E assim começa uma sucessão de eventos que me voltam a memória como as de um sonho. Algo confuso e etéreo, místico e mágico, uma simulação automática e subconsciente da memória. Ou talvez tenha sido exatamente como contarei, mas o sono mistura vida e sonho e certas vezes a realidade não é o que imaginamos. Pois a luz acende.
E meu corpo acorda desacordado, sem nenhuma ajuda dos meus olhos míopes pra entender a situação, apenas um corpo pequeno do lado do interruptor, no pé da minha cama. Sento assustado, ou confuso, ou puto. As emoções se misturam e não há um nome certo pra aparição. Mas logo que sei quem é fico puto e o resto das emoções se acalmam.

- Tho, precisamos conversar. - Diz Mariana, que reconheci mais pela voz do que pelo que meus olhos viam. Pego os óculos.

Puto. Borbulhando. O corpo dela dentro do meu organismo não passava de um corpo estranho que ativava os meus anticorpos. Independente dos sentimentos eu não conseguia aceitar um estranho - quem não fosse eu - dentro do meu território, excetuando quando o estranho fosse convidado. Certa vez Mariana me pediu uma cópia das chaves da minha casa. Certas vezes. Conversamos algumas vezes sobre esse meu territorialismo estranho, mas que não, ela não podia entrar quando lhe conviesse. Esse mesmo diálogo se deu nas vezes que ela me convidou para morar com ela. "Eu te dou um quarto só pra você e a gente divide o nosso quarto." A ideia era eu ter dois quartos no apartamento dela, sem pagar aluguel. As coisas são confusas às vezes.

- O que você tá fazendo aqui, Mariana?
- A gente precisa conversar.
- Eu preciso dormir, fiquei 36h acordado e tudo que eu quero é dormir.
- Eu sei, vamos lá pra minha casa...
- Eu estou dormindo. Estava, pelo menos.
- Dorme comigo.
- Eu já tô dormindo.
- Só pega as tuas coisas e vamos comigo.

Ah, às vezes a gente se excede na raiva. Às vezes a gente a guarda por muito tempo e a explosão inevitável causa estragos fatais. Morre gente. Morre nós.

- Mariana. Me deixa dormir.
- Tho, posso dormir com você?

Ela tira as calças e a blusa e o sutiã e faz uma conchinha em mim. Ela fede a cerveja. E se os acasos tivessem sido remontados de outra maneira, certamente aquele teria sido um presente dos deuses, mas ali ela era um corpo estranho. Apaguei a luz, deitei com as costas pra ela, na ponta distante da cama. Ela beija o meu pescoço e tenta tirar o meu short.

- MARIANA! EU QUERO DORMIR, PORRA!
- Pode dormir!
- COMO ASSIM? O QUE VOCÊ TÁ FAZENDO AQUI?
- Eu quero conversar.
- O QUE VOCÊ QUER CONVERSAR?
- Para de gritar.
- AAAAH, EU QUERO DORMIR!
- VOCÊ NÃO ME AMA MAIS!
- NÃO TE AMO MAIS!

Ela acende a luz. Com os olhos vermelhos bem molhados.

- Você está com sono.
- Sim...
- Você só disse isso porque está com sono.
- ...
- Thomas...
- O que?
- Isso é sono?
- Não sei. Pode ser.
- Isso é sono. Amanhã a gente conversa.

Ela começa a soluçar e pega as roupas. Faz um bolo com elas e sai do quarto. "Não tá todo mundo acordado? E essa menina vai sair pelada daqui?" Eu levanto. Ela está na sala se vestindo, as portas dos outros moradores fechadas. Assisto ela se vestir.

- Abre pra mim?
- Eu me perguntei como você ia sair.
- Hm.

Abro. Ela vai embora. Eu durmo. Foi outro sonho estranho. Ou só foi uma ocasião que eu poderia muito bem esquecer. Um punhado de coisas erradas que envolvem o passado. Por isso escrevo. Pra ver se esqueço. Do sonho que eu nunca tive.